O cinema de Pier Paolo Pasolini: Controvérsias, provocações, radicalidades
Um breve perfil
Pier Paolo Pasolini (Bolonha, 1922 – Óstia, 1975) foi um cineasta, poeta e escritor italiano. Em seus trabalhos, Pasolini demonstrou uma versatilidade cultural única e extraordinária, que serviu para transformá-lo numa figura controversa. Embora seu trabalho continue a gerar polêmica até hoje, enquanto era vivo, seus trabalhos foram tidos como obras de arte segundo muitos pensadores da cultura italiana e talvez a cultura mundial.
Era filho de Carlo Alberto Pasolini (1892–1958), bolonhês, militar de carreira, e de Susanna Colussi (1891–1981), professora primária. Teve um irmão chamado Guidalberto “Guido” Pasolini (1925–1945), que morreu numa emboscada lutando na Segunda Guerra Mundial.
Após uma infância e adolescência complicada e financeiramente difícil, em 1947 Pasolini ingressou no PCI (Partido Comunista Italiano), atuando com empenho e criatividade, o que o levou a ser escolhido secretário da seção regional. Foi no final da década de 1940 que Pasolini iniciou os seus estudos de Antonio Gramsci, autor marxista recentemente acessível devido ao projeto do secretário-geral do PCI, Palmiro Togliatti, de publicar imediatamente os Cadernos do Cárcere.
Entre 1950 e 1954, aos poucos Pasolini se inseriu nos círculos intelectuais de Roma, passando a ter acesso a publicações de resenhas, capítulos e poemas em revistas. Sua sorte definitivamente mudou com a oferta da editora italiana Garzanti de uma remuneração fixa para a escrita de um romance e com o cargo de assistente cinematográfico por convite de G. Bassani, em 1953.
Pasolini realizou estudos para filmes sobre a Índia, a Palestina e sobre a Oréstia, de Ésquilo, que pretendia filmar na África (Apontamento para uma Oréstia Africana). Seus filmes são muito conhecidos por criticarem a estrutura do governo italiano (na época fortemente ligado à igreja católica), que promovia a alienação e hábitos conservadores na sociedade. Além disso, seu cinema foi marcado por uma constante ligação com o arcaísmo prevalecente no homem moderno. Prova disso é o filme Teorema, em que um indivíduo entra na vida de uma família e a desestrutura por inteiro (cada membro da família representa uma instituição da sociedade).
Na madrugada entre 1º e 2 de novembro de 1975 Pasolini foi brutalmente assassinado, em local próximo ao hidro-aeródromo de Óstia, um bairro periférico de Roma. A morte de Pasolini nunca foi totalmente explicada. Àquela altura de sua vida, a malquerença de grande parte da intelectualidade à Pasolini se deveu em geral a ele ter se deslocado para o centro de vários debates com vitalidade e franco antagonismo. Por outro lado, se somaram elementos psicológicos como a homofobia latente nos interditos da crítica à sua figura pública que era claramente marxista, crítico mordaz ao moralismo conservador, seja ele político ou religioso.
Seu cinema trafegou por radicalidades contra as instituições conservadoras, desnudou um moralismo hipócrita, destruiu mitos realizando releituras modernas, adaptou clássicos da literatura antiga, abordou dogmas religiosos, tratou de questões sociais, defendeu a emancipação da sociedade italiana numa linha marxista. Enfim, o cinema de Pier Paolo Pasolini foi provocativo, constestador e controverso. Um artista de muitas facetas artísticas, mas sobretudo polêmico e transformista.
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini em duas épocas
Filmes neorrealistas
Em seu início de carreira, Pasolini sofreu a influência do movimento cinematográfico do neorrealismo italiano, que defendia o humanismo e abordava uma temática social em defesa dos trabalhadores na Itália pós-segunda guerra mundial.
Em seu primeiro filme, “Accattone”, de 1961, tem-se um cafetão da periferia pobre de Roma na década de 1960 e que vive dos rendimentos ganhos pela sua prostituta Maddalena. Nunca trabalhou um só dia na sua vida e passa o tempo pelos cafés com os seus também ociosos amigos. Quando Maddalena é presa por perjúrio, perde a sua fonte de rendimento e, sem ninguém para o sustentar, começa o seu declínio, chegando a passar fome. E ocorre uma transformação em sua vida.
Accattone, 1961
Cenas de “Accattone”, 1961
No filme “Mamma Roma”, de 1962, temos uma prostituta que sonha em mudar de vida e de melhorar a sua classe social, o que a permitiria voltar a viver com o filho Ettore. Para tanto, decide se casar com Carmine, seu ex-gigôlo. Infelizmente, ela encontrará muitas dificuldades para realizar seu sonho. Este filme é um grande objeto de estudo para muitos pesquisadores do cinema, pelo fato de que seus planos e ângulos de filmagem são fortemente inspirados em afrescos de Giotto, Caravaggio e outros grandes artistas plásticos.
“Mamma Roma”, 1962
Cenas de “Mamma Roma”, 1962
“Gaviões e Passarinhos”, de 1966, é um filme de fantasia social, com humor, onde um pai e seu filho que estão passeando encontram um corvo falante e filosófico. O pássaro os leva em uma aventura de viagem no tempo, contando-lhes histórias relacionadas a São Francisco.
“Gaviões e Passarinhos”, 1966
Cenas de “Gaviões e Passarinhos”, 1966
O melhor filme sobre Jesus Cristo
No filme “O Evangelho Segundo São Mateus”, de 1964, tem-se uma visão diferente da pregação e martírio de Jesus Cristo. Em vez do cordato pastor, temos um líder, que reivindica e se enfurece. A intenção de Pasolini era mostrar Jesus como um homem de seu tempo. Para isso, preferiu atores amadores ou pessoas do povo.
O filme reinventa a figura mítica do Cristo partindo dos diálogos tirados do Evangelho de Mateus, considerado o mais realista dos quatro. O Cristo de Pasolini é um homem severo e inflexível, “diz que não veio trazer a paz, mas a espada”.
Marxista, desde jovem, ateu e anticlerical, o cineasta Pasolini utilizou recursos relacionados com o cristianismo que absorveu da sua mãe, como o sacrifício e a pureza mítica, como indissociáveis dos ideais revolucionários e de uma ideia de liberdade que não excluía o sacrifício de sangue.
O filme é considerado o melhor sobre a vida de Jesus Cristo. O Vaticano o elogiou muito.
“O Evangelho Segundo São Mateus”, 1964
Cenas de “O Evangelho Segundo São Mateus”, 1964
Mitos antigos
O cineasta Pasolini foi atrás de mitos antigos e trágicos para realizar dois filmes.
“Édipo Rei”, de 1967, é baseado na tragédia clássica de Sófocles. Édipo (Franco Citti), herdeiro do trono de Tebas, foi abandonado ao nascer em um deserto, por conta de uma previsão do Oráculo anunciando que o menino seria responsável pela morte de seu pai e se deitaria com sua mãe. Édipo é encontrado por um casal de camponeses que o criam. Porém, durante sua juventude ele se encontra com o mesmo Oráculo que o conta seu destino infeliz. Sendo assim, ele foge de seus pais camponeses, acreditando serem seus verdadeiros pais, em direção à Tebas. No caminho, ele se depara com uma carruagem e decide assaltá-la, matando as pessoas que estavam dentro dela. Assim, inicia-se a história de Édipo.
“Édipo Rei”, 1967
Cenas de “Édipo Rei”, 1967
O filme “Medeia”, de 1969, resgata o mito grego de Jasão e os Argonautas. A figura de Medeia é um mito clássico que se apaixona por Jasão e o ajuda a recuperar seu reino. No entanto, devido a circunstâncias infelizes, ela está presa. Ao ser libertada, ela descobre que Jasão vai se casar com outra mulher.
“Medeia”, 1969
Cenas de “Medeia”, 1969
Filmes de contestações sociais e políticas radicais
O cineasta Pasolini foi radical em suas críticas contra uma falsa moral vigente e se expressou de maneira não convencional em dois filmes provocativos e absolutamente controversos.
Em “Teorema”, de 1968, um estranho misterioso visita uma família italiana rica, mas disfuncional, e tem encontros sexuais com todos, incluindo a empregada. Depois que ele sai repentinamente, eles decidem perseguir seus sonhos. O filme retrata a história de um indivíduo e a sua influência em uma família burguesa. Curiosamente, cada membro da família representa uma instituição e um segmento da sociedade italiana. Através de suas personagens, o filme critica a futilidade, o comodismo e a alienação da burguesia.
“Teorema”, 1968
Cenas de “Teorema”, 1968
Já “Pocilga”, de 1969, Pasolini foi destruidor contra as convenções sociais e realizou um filme antropofágico e delirante. No enredo, em um passado indeterminado, um jovem canibal é condenado a ser despedaçado por alguns animais selvagens. Na segunda história, Julian, o filho de um industrial alemão do pós-guerra, está a caminho para se deitar com os porcos da sua fazenda.
“Pocilga”, 1969
Cenas de “Pocilga”, 1969
A trilogia da vida
Baseando-se em episódios extraídos do clássico livro Decamerão (1348-1353), do escritor italiano Giovanni Boccaccio, Pasolini tece, com muita poesia e erotismo, um divertido, sensual e popular mosaico da Idade Média no primeiro filme de sua “Trilogia da Vida”, abordando também as desigualdades sociais e a corrupção religiosa do período. O filme foi vencedor do Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim.
“O Decameron”, 1971
Cenas de “O Decameron”, 1971
Baseando-se em histórias do popular livro “Os Contos de Cantuária” (1387-1400), do inglês Geoffrey Chaucer, Pasolini compõe, de forma bastante livre, um hino de amor à vida, criando imagens mágicas e rústicas a fim de criticar o moralismo vigente na sociedade de sua época. Um filme político e humanista que merece ser redescoberto. O filme foi vencedor do Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim.
“Os Contos de Canterbury”, 1972
Cenas de “Os Contos de Canterbury”, 1972
Baseando-se em contos de “As Mil e Uma Noites”, marco da literatura folclórica do Oriente Médio e do sul da Ásia, Pasolini conclui sua “Trilogia da Vida” acompanhando a trajetória do jovem Mur-el-Din, que é iniciado no amor por sua escrava Zumurrud. O diretor italiano mergulha nas locações e na cultura popular da região, construindo um fascinante filme etnográfico. O filme foi vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes.
“As Mil e Uma Noites”, 1974
Cenas de “As Mil e Uma Noites”, 1974
O último filme e também o mais polêmico
“Salò ou os 120 dias de Sodoma”, de 1975, comumente chamado simplesmente de Salò, é um filme livremente adaptado da obra Os 120 Dias de Sodoma, escrita em 1785 pelo Marquês de Sade, e é ambientado durante a Segunda Guerra Mundial. Foi o filme final de Pasolini, sendo lançado três semanas após seu assassinato.
O filme se concentra em quatro libertinos italianos ricos e corruptos na época da fascista República de Salò (1943–1945). Os libertinos sequestram 18 adolescentes e os submetem a quatro meses de extrema violência, sadismo e tortura sexual e psicológica. O filme explora temas como corrupção política, consumismo, autoritarismo, niilismo, moralidade, capitalismo, totalitarismo, sadismo, sexualidade e fascismo.
“Salò ou os 120 dias de Sodoma”, 1975
Cenas de “Salò ou os 120 Dias de Sodoma”, 1975
O legado para o cinema
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini tinha uma mente diversificada, altamente artística e com uma estética desconcertante. Observava, escrevia e filmava sobre as coisas importantes sobre a relação entre o arcaismo e a modernidade do mundo. Tinha um senso muito crítico. Foi influenciado pelas questões sociais e humanistas advindas do movimento cinematográfico do neorrealismo italiano, mas não se prendeu a isso. Ele optou por criticar as alienações, comodismos, a inutilidade da classe social dominante e a herança cultural histórica de um mundo onde prevalece um poder hipócrita, inculto e dominador.
Pasolini foi contestador sempre. E, apesar de se dizer ateu e marxista, Pasolini realizou o melhor filme sobre a vida de Jesus Cristo. O Vaticano ficou impressionado com sua adaptação do Evangelho de São Mateus para o cinema. Cristo foi tratado como um ser fantástico, ativo na vida cotidiana, crítico contra as dominações políticas e religiosas opressoras e contra as estruturas erradas e conservadoras da época. E também de todas as épocas.
Pasolini, ainda que tenha sido sempre radical no cinema, era meigo, alegre, amigável, culto, mas morreu assassinado brutalmente numa situação ainda nunca explicada.
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini filmando