A criação da Embrafilme, figuras de renome e filmes brasileiros da década de 70
Crônicas urbanas e de costumes
Enquanto o Cinema Novo estava de vento em popa nos anos 60 com ótimos filmes inovadores e muitos politicamente engajados, alguns diretores brasileiros faziam um cinema diferente, focado em crônicas urbanas e de costumes, abordando as classes média e alta, vida burguesa, a alienação social, romances e vazios existenciais. Alguns filmes se sobressaíram e surpreenderam com uma narrativa psicológica e temáticas despreocupadas em relação aos problemas políticos e sociais que o país apresentava nessa época de ditadura militar. Estamos falando de quatro filmes: “Noite Vazia”, de 1964, “Todas as Mulheres do Mundo”, de 1966, “Copacabana Me Engana”, de 1968, e “Memória de Helena”, de 1969.
“Noite Vazia” foi dirigido por Walter Hugo Khouri em 1964 e é um drama erótico e existencial. Acompanha uma aventura libertina em São Paulo, onde dois amigos tomam duas prostitutas (as atrizes Odete Lara e Norma Bengell) para uma noite de busca de prazeres diferentes. Mas a experiência acaba por ser frustrante para todos os envolvidos, pela amargura em suas conversas e atitudes que revelam angústias e sentimentos mais profundos, além do vazio de suas vidas. Filmado em ambientes fechados, o filme tem uma forte narrativa psicológica.
“Todas as Mulheres do Mundo” foi dirigido por Domingos de Oliveira em 1966 e é uma comédia romântica que acompanha o conquistador Paulo (Paulo José) e a sensível Maria Alice (Leila Diniz), um casal apaixonante que se envolve em um caso amoroso. É uma história simples de amor com todas as situações peculiares de encontros e desencontros, tramas românticas, situações cômicas, um retrato de uma paixão jovem. O filme ganhou muitos prêmios no Festival de Cinema de Brasília de 1966, incluindo melhor filme.
“Noite Vazia”, 1964, e o diretor Walter Hugo Khouri
Cenas de “Noite Vazia”, 1964
“Todas as Mulheres do Mundo”, 1966, e o diretor Domingos de Oliveira
Cenas de “Todas as Mulheres do Mundo”, 1966
Em 1968 foi lançado o filme “Copacabana me Engana”, dirigido por Antônio Carlos Fontoura. É um drama urbano, abordando a alienação da juventude carioca em busca de experiências novas. O enredo acompanha o jovem Marquinhos (Carlos Mossy), que não estuda, não trabalha, mora com parentes numa vida de burguesinho e que se envolve com uma mulher bem mais velha e já comprometida, Irene (Odete Lara). O filme trata de voyeurismo, vida sem compromisso, sociabilidade jovem e festas. Tem um trabalho excepcional de câmera na mão e tomadas de interiores.
Finalmente, em 1969, o diretor David Neves rodou “Memória de Helena”, vencedor do Festival de Cinema de Brasília como melhor filme. Trata de desilusão e ansiedades. Após o suicídio de Helena (Rosa Maria Penna), Rosa (Adriana Prieto), sua melhor amiga, e Renato (Arduíno Colassanti), com quem ela se relacionou, decidem mexer em sua vida passada para tentar entender suas atitudes e seu triste fim. Apesar do assunto trágico, “Memória de Helena” é uma aventura íntima que trafega pela delicadeza e o lirismo.
“Copacabana Me Engana”, 1968, e o diretor Antônio Carlos Fontoura
Cenas de “Copacabana me Engana”, 1968
“Memória de Helena”, 1969, e o diretor David Neves
Cenas de “Memória de Helena”, 1969
A criação da Embrafilme
A Embrafilme ou Empresa Brasileira de Filmes S.A. foi uma empresa de economia mista estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos.Foi criada em setembro de 1969, vinculada ao então Ministério da Educação e Cultura e como braço do Instituto Nacional do Cinema (INC). Enquanto existiu, sua função foi fomentar a produção e distribuição de filmes brasileiros. A empresa lançava anualmente, em média, 25 filmes. Durante sua existência, o cinema brasileiro viveu um grande período de expansão e consolidação artística.
A estatal ajudou a colocar no mercado mais de 200 filmes brasileiros entre 1969 e 1990. Em 1975, no auge da atuação da Embrafilme, o Brasil chegou a ter 3.276 salas de cinema e um total de 275 milhões de ingressos vendidos. Setenta por cento de suas ações eram do governo e o restante de outras entidades e sócios minoritários, entre eles o produtor Luiz Carlos Barreto. Os diretores da empresa foram os cineastas Roberto Farias, Gustavo Dahl, Celso Amorim e Carlos Augusto Machado Calil. A Embrafilme mostrou ser importante a participação do Estado no fomento à cultura nacional.
Luiz Carlos Barreto, um ícone do cinema nacional
Luiz Carlos Barreto, além de fotógrafo, tornou-se um dos maiores produtores cinematográficos do Brasil. Barretão, como é conhecido, começou no cinema em 1961 como co-autor do roteiro e co-produtor do filme Assalto ao Trem Pagador, dirigido por Roberto Farias. Essa película obteve um enorme sucesso, tanto no Brasil, como no exterior. A partir de então, começou uma carreira vitoriosa em grandes produções cinematográficas, divididas com uma importante atividade política e cultural. Luiz Carlos Barreto também foi um dos grandes nomes do Cinema Novo, que revolucionou a linguagem e a estética cinematográfica.
Como diretor de fotografia em cinema é autor das concepções visuais de dois filmes emblemáticos, Vidas Secas e Terra em Transe, que mudaram o estilo de se filmar no cinema brasileiro. Ele detém a marca da produção de mais de setenta filmes brasileiros de curtas e longa-metragens. Além dos filmes que marcam sua carreira como produtor, é pai de Bruno Barreto e Fábio Barreto, dois diretores da geração pós-Cinema Novo. Graças à sua incansável atuação, contribuiu com a expansão do cinema brasileiro e com a imagem altamente positiva de nossos filmes a nível internacional.
O produtor Luiz Carlos Barreto e sua concepção fotográfica para o filme “Vidas Secas”, 1963, de Nelson Pereira dos Santos
Uma menção especial a Roberto Farias
Roberto Farias foi um diretor, roteirista e produtor brasileiro. Começou no cinema na Companhia Atlântida para onde foi levado por Watson Macedo para ser assistente de direção. A estreia foi no drama Maior que o Ódio, dirigido por José Carlos Burle. Fez quase dez filmes como assistente de direção ou de produção até estrear como diretor em 1957 com Rico Ri à Toa, uma chanchada estrelada por Zé Trindade. Roberto Farias também foi presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica e o primeiro cineasta a dirigir a Embrafilme.
Em 1960, com o policial Cidade Ameaçada, ganhou vários prêmios e se tornou um dos mais respeitados cineastas brasileiros, posição que ele viria a sacramentar com sua obra prima O Assalto ao Trem Pagador, em 1962. Na década de 1960 fundou a produtora R. F. Farias, uma das mais importantes do país. Tornou-se um diretor popular ao filmar a trilogia de filmes com Roberto Carlos, que começou em 1968 com Roberto Carlos em Ritmo de Aventura e terminou em 1971 com Roberto Carlos a 300 Quilômetros por Hora. Roberto Farias também realizaria outro grande filme sobre as perseguições, torturas e manipulações de massa da ditadura militar com “Pra Frente Brasil”, de 1982.
“O Assalto ao Trem Pagador”, 1962, o diretor Roberto Farias, e “Pra Frente Brasil”, 1982
Cenas de “O Assalto ao Trem Pagador”, 1962, com comentários do ator Grande Otelo
Cenas de “Pra Frente Brasil”, 1982
Uma seleção de filmes brasileiros na década de 70: Expansão e diversidade narrativa
Na década de 70, o Brasil sofria uma forte repressão política da ditadura militar e a censura atingia toda a cultura, notadamente no teatro, cinema e música. O cinema brasileiro apresentou uma expansão quantitativa, derivada do incentivo da Embrafilme, e também qualitativa. Os filmes apresentavam enredos diferenciados e as técnicas se aprimoravam com produções atingindo um grande vigor artístico. Nesse período, novos diretores surgiram e o Cinema Novo, poderoso na década de 60, influenciava muita gente e ramificava seu alcance em outros estilos e modelos de fazer cinema.
O cinema brasileiro passou também a ser mais visto pelo público, salas de exibição se expandiram pelo país e o Estado brasileiro, através do Ministério da Cultura e da Embrafilme, fornecia recursos suficientes para fortalecer a produção cinematográfica nacional. Com isso, várias temáticas foram se desenvolvendo e o nosso cinema ganhava vida própria e crescia muito em termos artísticos. Na década de 70, selecionamos nove filmes representativos que englobam as preocupações de nossos artistas de cinema em relação à nossa cultura e a nossa gente.
Começamos com o filme “São Bernardo”, de 1972, dirigido por Leon Hirszman. Trata-se de uma adaptação cinematográfica do romance do escritor Graciliano Ramos. O filme acompanha Paulo Honório (Othon Bastos), um sertanejo de origem humilde que se torna um próspero fazendeiro no interior de Alagoas. Casa com Madalena (Isabel Ribeiro), uma mulher erudita, mas suas obsessões, desconfianças e modos tirânicos geram crises insolúveis e momentos de introspecção e loucura.
Em 1973 foi lançado um filme de muito bom humor, muito divertido: “Vai Trabalhar Vagabundo”, dirigido pelo ator Hugo Carvana. Trata-se de uma comédia de costumes e acompanha um malandro carioca, Secundino (Hugo Carvana), que sai da prisão depois de longo tempo e, sem dinheiro, utiliza seu talento para trambiques para ganhar algum. Preocupado com o fim da malandragem carioca, ele planeja uma revanche entre os dois maiores jogadores de sinuca da época, Russo (Paulo César Peréio) e Babalu (Nelson Xavier).
Um grande expoente do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos diversificou muito a temática de seus filmes ao longo de sua carreira. Em 1974 ele rodou “O Amuleto de Ogum”, um filme sobre crimes e crenças religiosas populares. Narrado por um violeiro cego de rua (Jards Macalé), a trama gira em torno de um garoto, Gabriel (Ney Santana), que, a pedido da mãe, vai a um terreiro de umbanda para “fechar o corpo” (proteger-se pelos espíritos). Crescido, trabalha com o crime e a contravenção na Baixada Fluminense, até que se envolve com Eneida (Anecy Rocha), amante do bicheiro Severiano (Joffre Soares), e é jurado de morte.
Pela ordem: “São Bernardo”, 1972, “Vai Trabalhar Vagabundo”, 1973, e “O Amuleto de Ogum”, 1974
Cenas de “São Bernardo”, 1972
Cenas de “Vai Trabalhar Vagabundo”, 1973
Cenas de “O Amuleto de Ogum”, 1974
Em 1975, uma nova temática surgiu no cinema brasileiro: a vida das populações amazônicas. Assuntos como prostituição, miséria e abandono foram tratados. Assim, foi lançado “Iracema, Uma Transa Amazônica”, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. O filme, narrado em estilo semidocumental, acompanha uma jovem cabocla (Edna de Cássia) que, insatisfeita com sua vida de prostituição, se arrisca numa viagem com um caminhoneiro, Tião (Paulo César Peréio), pelas estradas da transamazônica. O filme foi proibido durante muitos anos ao tratar de injustiças sociais e descasos do governo.
O diretor Bruno Barreto, filho do grande produtor Luiz Carlos Barreto, rodou em 1976 o filme “Dona Flor e seus Dois Maridos”, baseado no livro popular de Jorge Amado. Foi um grande sucesso de público. Na década de 40, Dona Flor (Sonia Braga) é uma sedutora professora de culinária casada com o malandro Vadinho (José Wilker), viciado em farras e jogatinas. Quando ele morre, Dona Flor se casa novamente com um senhor de personalidade oposta (Mauro Mendonça), recatado e conservador. Com saudade do malandro, Dona Flor passa a receber visitas dele e acaba por dividir o leito com dois maridos.
Um grande diretor, Héctor Babenco, despontou no cenário do cinema nacional ao lançar um filme audacioso: “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia”. Com uma atuação incrível de Reginaldo Farias, o filme relata a trajetória do criminoso Lúcio Flávio, famoso bandido da década de 70, que se tornou nacionalmente conhecido pelos roubos a banco, fugas espetaculares e envolvimento com esquadrões da morte, organizações policiais que atuavam à margem da Lei. O filme teve muita aceitação de crítica e de público e mostrou um grande apuro técnico em cenas de ação.
Pela ordem: “Iracema, Uma Transa Amazônica”, 1975, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, 1976, e “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia”, 1977
Cenas de “Iracema, Uma Transa Amazônica”, 1975
Cenas de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, 1976
Cenas de “Lúcio Flávio, O Pasageiro da Agonia”, 1977
O divertido e alucinante “A Lira do Delírio” foi lançado em 1978 e dirigido por Walter Lima Jr. O filme é ótimo de assistir, com humor e ação. Na história, os participantes do bloco carnavalesco Lira do Delírio se cruzam num cabaré da Lapa carioca, onde o filho de uma dançarina, Ness (Anecy Rocha), é sequestrado. Para descobrir o culpado e as razões do crime, ela conta com a ajuda de um repórter policial, Pereio (Paulo César Peréio), que também investiga um homicídio contra um homossexual. Misturando carnaval, sequestro e assassinato, “A Lira do Delírio” é uma jóia, frenético e propositalmente bagunçado, nos arrastando numa trama de farras, perseguições e investigações.
Em 1978, o cineasta Arnaldo Jabor realizou seu melhor filme: “Tudo Bem”, vencedor do Festival de Cinema de Brasília. A história é simples, mas recheada de personagens bem definidos e diferentes, que variam entre um casal idoso, oportunistas, místicos, prostitutas e operários. Filmado totalmente em interiores, conta que um casal de idosos, Juarez (Paulo Gracindo), que vive com os fantasmas de amigos já falecidos, e Elvira (Fernanda Montenegro), uma dona de casa preocupada com a impotência do marido, realiza uma reforma em seu apartamento quando então se estabelece um caos nas relações entre todos.
Por fim, em 1979, Cacá Diegues realizou “Bye Bye Brasil”, um ótimo filme de estrada. O crescimento do poder da televisão, pobreza, abandonos e a perda da individualidade são examinados por uma trupe de artistas (liderados pelos atores José Wilker e Betty Faria) que viajam pelo Brasil, cruzando o Nordeste e a Amazônia, realizando espetáculos itinerantes com a Caravana Rolidei. Cacá Diegues acertou em cheio, fazendo um road movie em que homenageia artistas mambembes, mostra um país desconhecido e abandonado e nos passa um olhar realista e poético sobre um triste contexto social.
Pela ordem: “A Lira do Delírio”, 1978, “Tudo Bem”, 1978, e “Bye Bye Brasil”, 1979
Cenas de “A Lira do Delírio”, 1978
Cenas de “Tudo Bem”, 1978
Cenas de “Bye Bye Brasil”, 1979
Alguns diretores que despontaram no cinema nacional na década de 70. Pela ordem: Hugo Carvana, Walter Lima Jr., Bruno Barreto, Jorge Bodansky e Héctor Babenco
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