O cinema de François Truffaut: Amores, individualidades, críticas às convenções sociais e mundo infanto-juvenil
Infância difícil e paixão pelo cinema
François Truffaut nasceu em Paris em 1932 e morreu em 1984. O garoto jamais conheceu o pai biológico e foi criado pelos avós maternos. O avô era um homem rígido, enquanto a avó despertou no menino a paixão pela literatura e música. Rechaçado tanto pelo pai adotivo quanto pela mãe, seu espírito rebelde transformou-o em um mau aluno na escola e o induziu a cometer alguns atos de delinquência, como pequenos furtos.
Truffaut costumava faltar às aulas para assistir a muitos filmes secretamente. A paixão pelo cinema fez o jovem Truffaut fundar, em 1947, um cineclube, chamado Cercle cinémane. Aquela era uma época de enorme efervescência cultural na França do pós-Segunda Guerra Mundial, e os cineclubes, lotados, eram o local para se assistir às projeções e discuti-las depois.
Mas o Cercle não teria vida longa, já que ele concorria com o Travail et culture, cineclube do escritor e crítico de cinema André Bazin. A influência de Bazin na vida de François Truffaut foi decisiva. Bazin praticamente o adotou e o incentivou no cinema. Truffaut, então, se tornara um autodidata, um cinéfilo compulsivo. Bazin o introduziu no cine clube Objectif 49. Truffaut também participava do Ciné club du Quartier Latin, boletim sobre cinema coordenado por Eric Rohmer, em que ele daria seus primeiros passos como crítico da sétima arte.
O cineasta François Truffaut e seu grande amigo e mentor André Bazin
O trabalho na Cahiers du Cinema
Em abril de 1951 foi criada a Cahiers du Cinéma, uma Revista de crítica cinematográfica. Fundada por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca, tornar-se-ia a mais influente publicação sobre o assunto na França. Em 1953, Bazin ajudou Truffaut a entrar para a Cahiers.
A partir do seu primeiro artigo, Une Certaine tendance du cinema française (Uma certa Tendência do Cinema Francês, em português), um manifesto contra “a tradição da qualidade” do cinema francês, Truffaut causou polêmica no meio cinematográfico, seja para defendê-lo ou criticá-lo. Além das críticas contundentes de François Truffaut, a Cahiers contava com outros jovens promissores como Claude Chabrol, Eric Rohmer, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard.
Como crítico de cinema, Truffaut foi se empoderando, escrevendo sobre grandes filmes e grandes diretores, alguns dos quais se tornariam seus amigos, como Jean Renoir, Max Ophuls, Roberto Rossellini e Alfred Hitchcock. Com Hitchcock, Truffaut realizou, a partir de 1955, uma das maiores entrevistas da história do cinema intitulada Hitchcock/Truffaut.
A Revista Cahiers du Cinema e o livro de entrevistas Hitchcock/Truffaut
Um expoente da Nouvelle Vague
Como crítico, Truffaut desenvolveu seu famoso conceito de Politique des Auteurs (teoria autoral, em português), o qual uma obra é considerada uma produção individual, seja ela uma canção, um filme ou um livro. Defendia que a responsabilidade sobre um filme dependia quase que exclusivamente de uma única pessoa, em geral o diretor. Para ele, o grande representante de sua teoria era o diretor britânico Alfred Hitchcock.
A Politique des Auteurs foi a base para o surgimento de um movimento que revolucionaria o cinema francês e mundial, a Nouvelle Vague, criada por jovens cineastas franceses, a maioria oriundos da Revista Cahiers du Cinema, que defendiam a produção tanto autoral quanto intimista e de baixo custo. Esse movimento se opôs ao cinema tradicional de Hollywood e revolucionou a forma de se fazer um filme: câmera na mão, filmagens nas ruas, cortes sem continuidade, individualidades e temáticas contra as convenções sociais.
Truffaut seguiria um caminho próprio, intimista, sempre crítico, abordando os amores em suas diversas formas e situações, o mundo infanto-juvenil, as individualidades e se manteve afiadíssimo em oposição às convenções sociais.
O mundo infanto-juvenil: Delinquência, abandono e inocência
No seu primeiro longa-metragem como cineasta, Truffaut lançou em 1959 “Os Incompreendidos” e ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes. No filme, Truffaut aborda seus próprios problemas na adolescência e mostra também sua paixão pelo cinema. Ao acompanhar o garoto Antoine Doinel (vivido por Jean-Pierre Léaud), o filme faz uma crítica ao autoritarismo escolar, ao abandono dos pais e à vida de delitos de maneira realista, mas também com lirismo.
Truffaut volta a tratar do tema juvenil em “O Garoto Selvagem”, de 1970. Dessa vez, Truffaut narra a história de um garoto do final do século XVIII que supostamente nunca teve contato com a sociedade, não anda como um bípede, nem fala, lê ou escreve. Ele é resgatado com cerca de doze anos de idade e passa a ser objeto de estudo de um professor ávido pelo conhecimento da condição humana e pela compaixão.
Já em 1976, Truffaut, mais uma vez, retorna ao mundo das crianças em “Na Idade da Inocência”. O filme faz uma panorâmica das vivências de um grupo de crianças de idades variadas numa pequena cidade francesa, mostrando as relações com os adultos e entre si. São várias situações que abordam desde acidentes domésticos, traquinagens, impulsos sexuais, primeiro amor e a violência infantil, procurando demonstrar como as crianças são extremamente engenhosas.
Os Incompreendidos, 1959
Cenas de “Os Incompreendidos”, 1959
O Garoto Selvagem, 1970
Cenas de “O Garoto Selvagem”, 1970
Na Idade da Inocência, 1976
Cenas de “Na Idade da Inocência”, 1976
Amores diferenciados, amargos, traiçoeiros, fora de convenções sociais
Em 1962, Truffaut roda um dos grandes filmes do movimento da Nouvelle Vague: “Jules e Jim”. O filme mostra um triângulo amoroso livre de convenções sociais. Na Paris de 1912, os amigos Jules (austríaco) e Jim (francês) se apaixonam pela francesa Catherine, que acaba se casando com Jules. Depois da Primeira Guerra Mundial, que opôs a França à Alemanha, os três amigos voltam a se encontrar, e Jules se apaixona por Jim. Foi um filme transgressor na época.
Em “Beijos Roubados”, de 1968, Truffaut trabalha com um personagem masculino muito instável em suas relações amorosas e profissionais. É uma comédia romântica sobre as confusões afetivas e amores amargos. Aqui, seu alter-ego Antoine Doinel (sempre com o ator Jean-Pierre Léaud) tenta reviver uma nova aventura com sua antiga paixão.
No filme “A Sereia do Mississipi”, de 1969, Truffaut trabalha com um amor traiçoeiro e interesseiro. Um empresário se casa com uma mulher mesmo ela não parecendo com a foto que lhe mandou antes. Ele não sabe, mas ela está envolvida num caso de uma mulher que foi assassinada, no passado, em circunstâncias misteriosas. Esse fato e o amor de ambos mudará a vida de Louis completamente, fazendo-o se aproximar cada vez mais da ruína e da morte.
Já em “Domicílio Conjugal”, de 1970, Truffaut aborda os problemas das relações matrimoniais, as confusões emocionais do dia a dia de um casal que tenta se manter como um casal, a luta pela sobrevivência, mas também traições e um olhar cínico sobre as relações humanas em geral. O que vale no filme é sua direção tecnicamente impecável e alguns momentos divertidos em cima de um tema sério.
Jules e Jim, 1962
Cenas de “Jules e Jim”, 1962
Beijos Roubados, 1968
Cenas de “Beijos Roubados”, 1968
A Sereia do Mississipi, 1969
Cenas de “A Sereia do Mississipi”, 1969
Domicílio Conjugal, 1970
Cenas de “Domicílio Conjugal”, 1970
As influências de Hitchcock
Truffaut sofreu influências do Diretor britânico Alfred Hitchcock. Ele admirava a técnica do mestre do suspense e de sua temática que envolvia culpas, medos, ansiedades e segredos. Se tornaram amigos e Truffaut se utilizou do estilo do britânico para homenageá-lo em alguns filmes.
“Fahrenheit 451”, de 1966, é uma ficção científica atípica. Apesar do gênero do filme, Truffaut realizou cenas em que faz uso das técnicas de Hitchcock de maximizar situações dramáticas. A história aborda uma sociedade futura que baniu todo material de leitura e o trabalho dos bombeiros é manter o fogo em 451 graus: a temperatura que o papel queima. Um bombeiro começa a repensar seu trabalho quando conhece uma garota apaixonada por livros.
Em “A Noiva Estava de Preto”, de 1968, a influência de Hitchcock é mais evidente, aliás é total. Ao trabalhar com uma história de assassinato, Truffaut descarta o whodoit (Investigação de quem matou) e deixa o espectador sabedor da trama e da assassina. Daí, é puro suspense, seguindo os passos de uma viúva cujo marido foi morto e a caça aos responsáveis pelo crime. A trama também não explica o porquê do assassinato.
No seu último filme, “De Repente, Num Domingo”, de 1983, Truffaut mais uma vez homenageia Hitchcock ao trabalhar com o tema do homem errado ou do homem que é acusado de algo que não cometeu e precisa resolver o caso para se safar. No enredo, temos um pacato agente imobiliário suspeito de dois assassinatos que se esconde da polícia e tenta encontrar o verdadeiro assassino. Um Hitchcock puro.
Fahrenheit 451, 1966
Cenas de Fahrenheit 451”, 1966
A Noiva Estava de Preto, 1968
Cenas de “A Noiva Estava de Preto”, 1968
De Repente, Num Domingo, 1983
Cenas de “De Repente Num Domingo”, 1983
Adaptações literárias e ambientações de época
Truffaut era um apaixonado por livros e realizou algumas adaptações literárias muito boas, ambientadas em épocas distintas.
Em 1971 rodou “As Duas Inglesas e o Amor” onde trata de um triângulo amoroso na virada do século XIX para o século XX. O filme é visualmente muito bonito e essa beleza nos chega através do pôr-do-sol defronte ao mar, dos jardins quase impressionistas de Paris e das paisagens longínquas e românticas que aparecem no decorrer da fita. A história fala de desencontros, ao mesmo tempo em que aborda o desapego, o afastamento, a renúncia do outro, o prazer do amor e o fulgor pela paixão literária.
Mas foi em 1975 que Truffaut radicalizou sobre o tema da paixão. Trata-se de “A História de Adèle H”. É a história do amor obsessivo e não correspondido que a jovem Adèle H., filha do escritor francês Victor Hugo, nutriu por um oficial inglês, o tenente Pinson. A história se passa no século XIX. Truffaut sempre foi passional, mas nunca tinha sido tão duro e doloroso ao tratar de seu tema favorito, o amor. A história é trágica, tristíssima, mas o filme é espetacular.
O filme de maior sucesso de público de Truffaut foi “O Último Metrô”, de 1980, com dois grandes atores: Gerard Depardieu e Catherine Deneuve. O filme é ambientado na Paris de 1942, quando a cidade estava tomada pelos nazistas. Lucas Steiner, um diretor de teatro judeu, é obrigado a se esconder dos invasores no porão do lugar onde as peças são ensaiadas e apresentadas. É um filme em defesa da cultura e contra as opressões.
As Duas Inglesas e o Amor, 1971
Cenas de “As Duas Inglesas e o Amor”, 1971
A História de Adèle H, 1975
Cenas de “A História de Adèle H”, 1975
O Último Metrô, 1980
Cenas de “O Último Metrô”, 1980
Policial noir, homenagem ao cinema, um olhar para o feminino
Truffaut não gostava do cinema tradicional de Hollywood, mas cultuava alguns estilos dos filmes americanos. Foi o caso de “Atirem no Pianista”, de 1960, em que Truffaut realiza um drama policial no estilo do cinema noir. No enredo, após perder a esposa, o célebre pianista Edouard Saroyan abandona a carreira e passa a tocar em um bar, onde acaba reencontrando um de seus irmãos, que está envolvido com a máfia. Foi rodado em ambientes fechados e escuros.
Com “A Noite Americana”, de 1973, Truffaut finalmente fez sua própria homenagem ao cinema. Ao fazer “um filme dentro de outro filme”, Truffaut nos apresenta os bastidores do cinema, mostrando todo o seu esforço coletivo. No enredo, temos Ferrand, um cineasta, durante a produção de um filme chamado Je vous présente Pamela, com seus imprevistos, atores com ego inflado, problemas técnicos e as soluções improvisadas para concluir o projeto a tempo.
Além de sua obsessão pelas paixões, Truffaut realizou um filme em que apresenta uma sátira machista sobre o universo feminino. Trata-se de “O Homem que Amava as Mulheres”, de 1977. Ainda que aborde as mulheres como marionetes de um personagem masculino um tanto promíscuo, o filme arranca gargalhadas, é marcado pela sinceridade de seus personagens, não há pudor e as enganações são enganações contra si mesmos.
Atirem no Pianista, 1960
Cenas de “Atirem no Pianista”, 1960
A Noite Americana, 1973
Cenas de “A Noite Americana”, 1973
O Homem que Amava as Mulheres, 1977
Cenas de “O Homem que Amava as Mulheres”, 1977
O legado para o cinema
François Truffaut foi um amante da cultura, tanto do cinema, quanto da literatura e da música. Foi também um estudioso do cinema. Além de cinéfilo, crítico mordaz, diretor genial, Truffaut foi um dos grandes expoentes do movimento cinematográfico da Nouvelle Vague na França que redefiniu as formas de realização de filmes, com mais liberdade autoral e artística.
Seu cinema era marcado por paixões, recheado de histórias de amores amargos e traiçoeiros, homens indecisos ou fracos diante de situações críticas, metalinguagem, amor pelo cinema e pela literatura, tratamento infanto-juvenil, natureza, convenções quebradas e críticas sociais. Truffaut se preocupava muito com as individualidades e com as relações humanas, sempre pontuadas pelos desencontros, cinismo, interesses, renúncias. Mas era um cinema que conseguia tratar das alegrias e tristezas inerentes à condição humana de uma maneira agradável e sincera.
Truffaut não se interessava pelo cinema político ou engajado, mas foi um militante de causas culturais e um diretor autoral. Não tinha medo de se expor, de combater as convenções sociais, derrubar mitos morais, apresentar as fraquezas humanas, de ser duro quando era preciso e de ser poético quando lidava com dramas. Desenvolveu um cinema livre de amarras, tanto artísticas quanto ideológicas, e foi, antes de tudo, um amante do cinema.
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