O cinema de Ingmar Bergman: Dilemas sobre fé, Deus, mortalidade e o feminino
Informações gerais
Ernst Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, Suécia, em 1918 e morreu em 2007. Foi um diretor de cinema, roteirista, produtor e dramaturgo sueco. Amplamente considerado um dos cineastas mais talentosos e influentes de todos os tempos, os filmes de Bergman são conhecidos como meditações profundas sobre a alma humana, suas ansiedades, crenças e medos. Sua temática, desde sempre, foi carregada por uma inquietação sobre o silêncio de Deus.
Bergman dirigiu mais de 60 produções entre filmes e documentários, tanto para o cinema quanto para a televisão. Sua carreira teatral continuou em paralelo com sua carreira cinematográfica e incluiu períodos como diretor principal do Royal Dramatic Theatre em Estocolmo e do Residenztheater em Munique.
Bergman forjou uma parceria criativa com seus diretores de fotografia Gunnar Fischer e Sven Nykvist. Entre sua companhia de atores principais estavam Harriet Andersson, Bibi Andersson, Liv Ullmann, Gunnar Björnstrand, Erland Josephson, Ingrid Thulin e Max von Sydow. Bergman viveu grande parte de sua vida na ilha de Faro, Suécia, numa espécie de reclusão. Bergman realizou filmes nessa ilha.
O jovem Ingmar Bergman e a Lanterna Mágica, aparelho de imagens, que definiu sua vida
Família religiosa e a descoberta do cinema e do teatro
Bergman nasceu em uma família religiosa luterana muito devota e onde a figura paterna era soberana. Suas relações com o pai não eram boas, induzindo seu distanciamento das crenças religiosas. Criado, como ele mesmo afirmou, num mundo de imaginação de anjos, santos, dragões, profetas, demônios e humanos, Bergman não seguiu como uma pessoa praticante da religião, mas seu cinema sempre foi povoado de mitos religiosos, dúvidas de fé, inquietações sobre a existência de Deus e a mortalidade.
Seu interesse por cinema e teatro começou aos nove anos quando trocou um conjunto de soldadinhos de chumbo por uma lanterna mágica, aparelho que projetava imagens, e que alterou o curso de sua vida. Seu grande apreço por marionetes também o forjou ao teatro. Sua rotina escolar foi infeliz e seu desprezo pelas escolas era enorme. Ao se matricular na Universidade de Estocolmo para estudar arte e literatura, começou a trabalhar em teatro e a escrever suas próprias peças.
Demonstrando ótima aptidão para a escrita, Bergman foi convidado por membros da Svensk Filmindustri de Estocolmo para trabalhar em roteiros de filmes a partir de 1941. Sua primeira incursão no cinema foi como assistente de direção e roteirista no filme Torment, de 1944, que foi premiado em Cannes. O primeiro filme totalmente dirigido por Bergman foi Crise, lançado em 1946, onde Bergman, com uma forte influência da linguagem teatral, já esboça suas preocupações existenciais. Mas foi nos anos 50 que Bergman ganhou o mundo com filmes surpreendentes.
“Crise”, 1946, primeiro filme do diretor sueco Ingmar Bergman
O cinema de Bergman
Nos anos 50, Ingmar Bergman conquistou o mundo. Sua obra cinematográfica percorreu três décadas de maneira surpreendente e com uma inquietação a toda prova. Portanto, trataremos de sua filmografia referente às décadas de 50, 60 e 70. Bergman abordou uma variedade de temas, tais como amor, arte, o universo feminino e o seu conflito particular permanente entre fé/Deus/morte.
Como sua produção é vasta e complexa, vamos focar nos seus principais assuntos através de blocos temáticos, e a partir de uma seleção de filmes representativos. Alguns filmes ficaram de fora, mas nossa preocupação foi delimitar o campo de visão de Bergman em torno de obras que se sobressaíram ao longo de sua carreira.
O diretor Ingmar Bergman em duas épocas
Reflexões sobre o amor e a arte
Amores da Juventude
No filme “Interlúdio de Verão”, de 1951, Bergman aborda memórias afetivas e mostra as possibilidades do amor e da arte, mas sempre com contratempos. O enredo aborda Marie (Maj-Britt Nilsson), uma bailarina clássica que recorda seu primeiro amor da juventude, Erland (Georg Funkquist), ao mesmo tempo em que se apaixona por um inocente jovem, Henrik (Birger Malmsten), num relacionamento belo e trágico. Bergman explora lindamente o pano de fundo da arte como motivação de realização pessoal diante das intempéries da vida.
“Monica e o Desejo”, de 1953, é mais um filme de Bergman sobre o amor na juventude. Dois jovens reprimidos pela família se apaixonam e fogem de barco para uma ilha, onde passam momentos de grande prazer e alegria. No entanto, quando voltam, precisam lidar com as consequências de seus atos num mundo de códigos tradicionais de moral e conduta. Bergman discute a liberdade, os desejos, mas também a rotina angustiante das chamadas responsabilidades sociais.
O filme “Sorrisos de Uma Noite de Amor”, de 1955, se passa na Suécia na virada do século XX, onde um grupo de pessoas se encontram em uma casa de campo. Bergman realiza uma comédia de costumes que trata da guerra dos sexos, sentimentos cruzados, insatisfações amorosas de casais. Ainda que o filme trate de desequilíbrios emocionais, rupturas e acontecimentos furtivos, a narrativa transcorre de maneira leve e numa atmosfera bucólica.
“Interlúdio de Verão”, 1951, “Monica e o Desejo”, 1953, “Sorrisos de Uma Noite de Amor”, 1955
Cenas de “Interlúdio de Verão”, 1951
Cenas de “Monica e o Desejo”, 1953
Cenas de “Sorrisos de Uma Noite de Amor”, 1955
Questões sobre a arte e suas conexões
Em “Noites de Circo”, de 1953, Bergman trabalha com seus próprios assuntos pessoais ao abordar a condição do artista. Na trama o dono de um circo decadente, Albert, (Ake Gronberg) decide visitar a ex-mulher e os filhos quando a trupe chega à cidade em que vivem. Além de tratar do ambiente artístico com suas dificuldades, Bergman aproveita para mostrar a difícil relação com a família, a libido, o adultério e o exercício da arte a partir de uma visão hierárquica e, ao mostrar as misérias dos personagens, Bergman desencanta a alegria do circo.
Em seguida, Bergman volta a explorar o universo artístico, dessa vez contanto uma história macabra no filme “O Rosto”, de 1958. A trama segue um mágico viajante chamado Albert Vogler (Max Von Sydow), cujos shows ao vivo supostamente sobrenaturais são desafiados pela população cética de uma pequena vila no século XIX. Misturando elementos de drama psicológico e horror, Bergman discute a capacidade da arte de iludir e dispor de elementos da linguagem fantástica e sombria que ameaça a racionalidade científica.
“Noites de Circo”, 1953, e “O Rosto”, 1958
Crise de fé, Mortalidade, Deus e o Diabo
Quando Bergman se encontrava apavorado com a morte, resolveu se expressar através do filme “O Sétimo Selo”, de 1957. O filme é um conto medieval sobre a peste negra, dúvidas de fé e a morte. Bergman buscou no mundo medieval, entendido e mediado através da religião, o seu próprio medo apocalíptico, seja o temor pela morte ou o temor de Deus. O sentido da indagação do cavaleiro Antonius (Max Von Sydow) sobre sua fé vacilante é questionar a religiosidade como um todo, o papel de Deus e do diabo na vida humana.
No mesmo ano de 1957, Bergman rodou “Morangos Silvestres” com uma linguagem completamente diferente para o mesmo tema da mortalidade. O filme é uma jornada sentimental e existencial num formato de drama de estrada. Um médico idoso, Isak Borg (Victor Sjostrom), viaja para uma cidade onde receberá um diploma honorário. Ao longo do caminho, personagens e situações vão surgindo e ele vai meditando sobre os prazeres e os fracassos de sua vida. Bergman mergulha em memórias, misturando realidade, sonhos e pesadelos, e reflete sobre a existência humana e a proximidade da morte.
Já em 1960, Bergman volta a tratar de mitos religiosos e filma “O Olho do Diabo” que é uma espécie de comédia de fantasia sombria sobre uma missão do próprio diabo. O mulherengo Don Juan é enviado pelo diabo para seduzir Britt-Marie (Bibi Anderson), uma bela jovem, e fazê-la perder a virgindade antes do seu casamento. Bergman trata da questão do tabu religioso da castidade, de inferno e deixa Don Juan e o diabo em maus lençóis ao se depararem com uma mulher resistente em seus valores morais.
“O Séstimo Selo”, 1957, “Morangos Silvestres”, 1957, “O Olho do Diabo”, 1960
Cenas de “O Sétimo Selo”, 1957
Cenas de “Morangos Silvestres”, 1957
Cenas de “O Olho do Diabo”, 1960
O peso da religião e o silêncio de Deus
Em toda a sua vida, Bergman esteve envolto em questões de fé e religião, que o perturbavam constantemente. Suas crises espirituais sobre a existência ou não de Deus e, mais ainda, sobre o silêncio de Deus, o levaram a realizar filmes que expõem essa angústia pessoal.
Em 1960, Bergman realizou um filme que chocou pelo seu tema: estupro, assassinato e vingança em uma família religiosa. Estamos falando de “A Fonte da Donzela”. A história é uma fábula sobre o mal, densa e violenta. Narra que uma jovem virgem na Suécia medieval, Karin Tore (Birgitta Pettersson), de pais cristãos fervorosos, é estuprada e morta por camponeses a caminho da Igreja. Descobertos, os camponeses sofrerão com o devoto pai religioso, Herr Tore (Max Von Sydow), que encara a vingança como uma expiação demoníaca.
Em 1961, Bergman filma “Através de Um Espelho” e combina uma severa crise familiar que se aprofunda com a intangibilidade da presença de Deus. Depois de ser libertada de um manicômio, Karin (Harriet Andersson), uma esquizofrênica, volta para casa para seus entes queridos. No entanto, só existe distância e incompreensão uns com os outros, e sua doença piora. O filme faz um diálogo entre religião, psicologia e psicanálise, mas o que sobra é que Deus é a totalidade que não se move, e nós os seres perecíveis num mundo de trevas.
Ainda dentro da temática religiosa, Bergman rodou “A Luz de Inverno”, em 1963, onde faz uma purgação interior sobre sua própria experiência desgastante de fé. No filme, temos Tomas (Gunnar Bjornstrand), um pastor desiludido que tenta lidar com sua perda de fé em Deus. Enquanto isso, um pescador apocalíptico desorientado, Jonas (Max Von Sydow), pede sua intervenção religiosa e uma professora, Marta (Ingrid Thulin,) tenta consolá-lo oferecendo amor, mas sua crise com o Todo-Poderoso cresce e só lhe resta a certeza do abandono de Deus.
“A Fonte da Donzela”, 1960, “Através de Um Espelho”, 1961, “Luz de Inverno”, 1963
Cenas de “A Fonte da Donzela”, 1960
Cenas de “Através de Um Espelho”, 1961
Cenas de “Luz de Inverno”, 1963
Um mergulho no universo feminino
Desde o princípio de sua carreira na direção de filmes em 1946, Bergman sempre mostrou um interesse especial em tratar com questões do universo feminino. Do ponto de vista pessoal e artístico, Bergman se envolveu com grandes atrizes e do ponto de vista de temáticas realizou grandes filmes com e sobre mulheres. Bergman teve vários casamentos e amantes.
Em 1958, já com um cinema maduro, Bergman filmou “No Limiar da Vida” abordando a questão da maternidade. Um tema importante para qualquer mulher. No filme, três mulheres possuem diferentes concepções sobre o gesto de gerar uma vida e discutem juntas sobre o tema. Uma delas está recebendo tratamento por conta de aborto espontâneo, outra por aborto induzido, e outra que deseja genuinamente ter a criança. Na convivência diária, elas se ajudam mutuamente a elucidar seus próprias dramas pessoais em torno da maternidade.
O filme “Persona” foi realizado em 1966 e trata da relação entre três mulheres: Elisabeth (Liv Ullmann), uma famosa atriz que para de falar; uma segunda, sua psiquiatra Lakaren (Margaretha Krook), que a deixa sob os cuidados de Alma (Bibi Andersson), uma dedicada enfermeira. Levadas para uma isolada casa de praia, Elisabeth e Alma passam a se relacionar com muita intimidade, compartilhando segredos e ansiedades sexuais. O filme é tecnicamente impecável, onde Bergman explora muito o uso de close-ups numa atmosfera intimista e até mesmo erótica.
Já em 1972, Bergman realiza aquele que é considerado um dos seus melhores filmes: “Gritos e Sussurros”. Filmado dentro de uma casa, o filme se utiliza de cores saturadas, notadamente o vermelho, para tratar de crises físicas e psíquicas e acompanhar as angústias, segredos e medos de quatro mulheres: duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann), que cuidam de uma outra irmã doente, Agnes (Harriet Andersson), com a ajuda de Anna (Kari Sylwan), que cuida dos afazeres domésticos. Bergman explora com profundidade a alma feminina.
Por fim, temos “Sonata de Outono”, de 1978. Primeiramente, o filme é um show de interpretação da dupla de atrizes Liv Ullmann, no papel de Eva, e Ingrid Bergman, no papel de Charlotte, que fazem respectivamente filha e mãe numa jornada dolorosa de reencontro e lembranças. Charlotte sacrificou as responsabilidades da maternidade por uma carreira como pianista clássica e Eva se sente negligenciada por causa disso, pois deixou de realizar desejos para casar e cuidar da irmã doente e abandonada. O filme é emotivo e dramático, mas elegante.
“No Limiar da Vida”, 1958, “Persona”, 1966, “Gritos e Sussurros”, 1972, “Sonata de Outono”, 1978
Cenas de Persona, 1966
Cenas de “Gritos e Sussurros”, 1972
Cenas de “Sonata de Outono”, 1978
O retorno às origens
Bergman já possuía uma vasta filmografia no começo dos anos 80. Ao lançar em 1982 o filme “Fanny e Alexander”, o cineasta afirmou que seria seu último trabalho no cinema. O fato é que não conseguiu cumprir essa promessa. Bergman estava cansado e cada vez mais recluso na ilha de Faro. Ele queria se voltar para suas atividades teatrais e realizar obras menos trabalhosas para a televisão sueca.
Em “Fanny e Alexander”, Bergman retornou às suas origens num roteiro de cunho autobiográfico. Bergman se concentra em duas crianças e sua grande família em Uppsala, Suécia durante a primeira década do século XX. Após a morte do pai das crianças, sua mãe (Ewa Fröling) se casa novamente com um bispo proeminente (Jan Malmsjö), que é abusivo com as crianças e adúltero. As crianças Fanny e Alexander e o padrasto Edvard são baseados no próprio Bergman, sua irmã Margareta e seu pai Erik Bergman, respectivamente. Bergman exorcizou sua infância.
“Fanny e Alexander”, 1982, e o diretor Ingmar Bergman no set de filmagens
Cenas de “Fanny e Alexander”, 1982
O legado de Ingmar Bergman
O cineasta Ingmar Bergman usou o cinema para exorcizar seus próprios fantasmas internos. Ao longo de sua vida e de sua carreira, Bergman carregou dentro de si as representações mitológicas de sua infância, ou seja, um mundo de anjos e demônios, e psíquicas, de sonhos e pesadelos. O cinema o fez explorar suas angústias em relação à existência de Deus e o sentido da vida. Ter fé, acreditar em Deus e aceitar a morte, com suas possibilidades de continuação da vida ou de ser um fato definitivo, o perseguiram a vida toda.
Em relação à sua obra cinematográfica, ela expressa mais dúvidas do que certezas, mais subjetividade do que puro realismo. Seus filmes são profundamente introspectivos e dão espaço a muitas impressões sobre a existência humana. Seu cinema trabalha bastante com a sensibilidade e com a aflição. Tecnicamente, Bergman era um grande diretor de cinema com uso frequente de close-ups, diálogos refinados e ambientes de intimidade.
Suas experiências no teatro proporcionaram um ótimo manejo com atores e atrizes e seus filmes tinham muita densidade dramática. Os sentimentos de angústia e perplexidade eram comuns no seu cinema. Suas ambientações, tanto históricas quanto no presente, se caracterizavam pela forte presença do drama humano, que leva o espectador para dois caminhos: reflexão ou resignação. Mas não há resposta pronta. Para Bergman, como a morte é inevitável e Deus é silencioso, o que nos resta é viver a vida da melhor maneira possível.
O diretor Ingmar Bergman e a ilha de Faro, local onde viveu recluso por muito tempo
O diretor Bergman, antes de sua morte, e o Museu em sua homenagem na ilha de Faro
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