O cinema de Nelson Pereira dos Santos: Realismo social, cultura popular e literatura
Um breve perfil
Nascido em 1928 na cidade de São Paulo e falecido em 2018, Nelson foi frequentador assíduo de salas de cinema. Seu pai o teria levado para uma delas pela primeira vez quando ele ainda era uma criança de colo. Sua paixão pelo cinema o transformou num crítico conceituado.
Aos 15 anos de idade, no colégio secundarista, Nelson já era aficionado pela literatura e isso marcou seu cinema com belas adaptações de obras literárias. Tornou-se integrante do Partido Comunista Brasileiro. O Partido, na época, era classificado como clandestino pelo governo de Getúlio Vargas.
Em 1950, realiza “Juventude”, um documentário encomendado pelo Partido Comunista sobre a história do mesmo. Primeiro trabalho de Nelson enquanto cineasta, “Juventude” é considerado um filme perdido, sem cópias existentes atualmente.
Nelson se graduou em direito pela Universidade de São Paulo, na turma de 1952. Com vontade de fazer cinema e após algumas experiências trabalhando em estúdios paulistanos, Nelson decide mudar-se para o Rio de Janeiro. Ainda em 1952 foi lançado o filme “Balança, Mas Não Cai”, comédia na qual atuou como assistente de direção. No ano seguinte, foi assistente de Alex Viany na produção “Agulha no Palheiro”, filme que já anunciava um cinema mais realista.
O cineasta Nelson Pereira dos Santos em duas épocas
Um cinema nacional-popular
Como militante comunista, Nelson Pereira possuía uma visão transformista de cultura popular e nacionalista. Sofreu forte influência do movimento cinematográfico do neorrealismo italiano que pregava o humanismo social e a defesa dos trabalhadores. Nesse caminho de abordar a realidade social do país, Nelson revolucionou o cinema brasileiro alterando seus padrões estéticos e suas narrativas alienadas para um cinema crítico e enraizado numa abordagem nacional-popular.
Com seu primeiro longa-metragem de ficção chamado “Rio, 40 Graus” (1955), Nelson não se importou com estúdios, filmou nas ruas do Rio de Janeiro e protagonizou personagens pobres. O filme tinha orçamento muito precário e foi detido pela polícia do Rio de Janeiro pois retratava a desigualdade social e abordava a cultura popular brasileira. Através do entusiasmo conseguido pelo filme das mentes intelectuais do Brasil, em poucos anos se desenvolveria o movimento do Cinema Novo brasileiro.
Em seu segundo longa de ficção, “Rio, Zona Norte” (1957), Nelson seguiu na sua linha nacional-popular contando a história do sambista Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, sendo livremente inspirado na história de vida do compositor Zé Kéti. Mais um filme que protagoniza gente pobre e seus dramas de vida.
Ainda nessa sua primeira fase, Nelson filma “Mandacaru Vermelho” (1961) no sertão da Bahia e inova, numa narrativa de faroeste, ao contar a história de um casal que se apaixona e ataca as tradições do coronelismo nordestino. Mais uma vez, Nelson continua seguindo sua proposta estética de um cinema voltado para questões estruturais do país e critica o domínio moral e econômico das oligarquias.
“Rio 40 Graus”, 1955, “Rio Zona Norte”, 1957, “Mandacaru Vermelho”, 1961
Cenas de “Rio 40 Graus”, 1955
Cenas de “Rio Zona Norte”, 1957
Cenas de “Mandacaru Vermelho”, 1961
Uma obra prima do Cinema Novo
Conhecedor dos graves problemas sociais, Nelson Pereira dos Santos, que já havia pavimentado um novo cinema através de seus primeiros filmes neorrealistas, buscou na literatura brasileira, mas especificamente no escritor alagoano Graciliano Ramos, o tema para rodar um de seus melhores filmes, considerado no mundo inteiro como uma obra prima: “Vidas Secas”, de 1963. Esse filme seria um dos marcos do movimento Cinema Novo no Brasil.
Tratando da precaríssima situação de trabalhadores rurais no interior de Alagoas, o filme se passa nos anos 40 quando, pressionados pela seca, uma família de retirantes composta por Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cadela Baleia, atravessa o sertão em busca de meios para sobreviver. Maltratados pelo poder público, pela polícia e por coronéis latifundiários, a família segue itinerante, sem rumo e sem nenhuma posse.
Em longos planos e poucos diálogos, Nelson traz a secura da escrita de Graciliano Ramos e um sol abrasador para a decupagem e montagem, apresentando sem pressa e floreios a duríssima saga daquelas pessoas com pouca ou nenhuma perspectiva, massacrados pela arbitrariedade das classes dominantes e a desonestidade do patrão.
Outro grande achado é a trilha sonora do filme, onde o som pontua discretamente as dificuldades daquelas vidas através de ruídos diegéticos como o som do carro do boi, ou no acorde de um violino desafinado, como na abertura e encerramento. É um elemento discreto, mas que cumpre papel importante para situar o desconforto daquelas pessoas.
Filme “Vidas Secas”, 1963
Cenas de “Vidas Secas”, 1963
As inquietações politicas
Nelson Pereira também tratou da temática política em três de seus filmes. Como se vivia numa ditadura militar, muitas vezes era preciso falar de política de forma alegórica ou indireta.
Em 1967, Nelson faz uma alegoria da situação de ditadura no país no filme “EL Justicero”. O longa-metragem retrata as aventuras de um playboy, filho de um General, que desfruta de uma boa vida graças ao dinheiro corrupto de seu pai. Contraditório em defender os pobres e viver como um burguês e conquistador, ele terá de lidar com as diferenças ideológicas ao se apaixonar por uma garota de esquerda.
No filme “Fome de Amor” (1968), Nelson fala de política de maneira indireta quando dois casais isolados em uma ilha do litoral do Rio de Janeiro se encontram numa seara de relações pessoais entremeadas por inquietações políticas. Em uma espécie de continuidade de El Justicero, Fome de amor é um retorno do diretor a uma certa “burguesia esclarecida”. É um melodrama que se transforma num filme político. O fascinante jogo de claro-escuro e de movimentos de câmera nos personagens funcionam como símbolos e sejam perguntas que Nelson levanta sobre nossa sociedade. Onde está o povo?”
Mas foi em 1984 ao adaptar o livro de memórias do escritor Graciliano Ramos, então preso acusado de ser comunista nos anos 30, que Nelson fez um verdadeiro libelo político contra a ditadura de Vargas. Em seu filme “Memórias do Cárcere”, Nelson faz um retrato das perseguições políticas no país e do tratamento de presos políticos nas prisões. O filme fez sucesso no Festival de Cannes, sofreu censuras e foi muito debatido no Brasil, que ainda vivia um processo de ditadura militar.
“El Justicero”, 1967, “Fome de Amor”, 1968, “Memórias do Cárcere”, 1984
Cenas de “El Justicero”, 1967
“Fome de Amor”, 1968
Cenas de “Memórias do Cárcere”, 1984
Uma brasilidade com temáticas diferenciadas
Nelson soube aproveitar as ferramentas do cinema para trafegar em outras narrativas, buscando sempre radicalizar uma brasilidade. Foi assim com três filmes diferenciados: “Boca de Ouro”, 1963, “Como Era Gostoso o meu Francês”, 1972 e “O Amuleto de Ogum”, 1974.
Em “Boca de Ouro”, de 1963, Nelson conta a história de um bicheiro assassinado, e a tentativa de um repórter em relatar a sua vida a partir do depoimento de uma de suas amantes. As lendas sobre o bicheiro, dentre outras coisas, revelavam que ele usava uma dentadura de ouro, e que estava preparando um caixão mortuário com o mesmo valioso metal. O interessante é que a figura de um bicheiro foi se tornando parte de nossa cultura popular.
Em “Como Era Gostoso o Meu Francês”, de 1972, Nelson se baseia no diário do viajante alemão Hans Staden no Brasil no século XVI e aborda história e antropofagia (uma referência ao movimento modernista de 1922). No filme, o personagem passa a ser um francês que é feito prisioneiro pelos índios tupinambás. Com nudez, o filme é um mergulho nas raízes do Brasil.
“O Amuleto de Ogum”, de 1974, é um de seus brilhantes trabalhos. O filme tem linguagem de cordel, avança numa abordagem mística, trabalha com crenças afro-brasileiras e ainda combina com o submundo do crime, quase um filme de gangsters. Com o enredo de um personagem que tem o corpo fechado, Nelson trabalha com uma iconografia brasileira absolutamente franca. Tudo isso resulta numa obra única que, a todo momento, conjuga o alucinado com a brutalidade, o imaginário religioso com a impiedosa realidade.
“Boca de Ouro”, 1963, “Como Era Gostoso o meu Francês”, 1972, “O Amuleto de Ogum”, 1974
Cenas de “Boca de Ouro”, 1963
Cenas de “Como Era Gostoso o meu Francês”, 1971
Cenas de “O Amuleto de Ogum”, 1974
A força da literatura em seu cinema
Nelson Pereira foi um exímio adaptador de obras literárias para o cinema. Profundo conhecedor da literatura brasileira, Nelson começou trabalhando com o universo do escritor Graciliano Ramos no filme “Vidas Secas”, de 1963, e prosseguiu com outros três grandes escritores: Machado de Assis, Jorge Amado e João Guimarães Rosa.
Em 1970, Nelson realiza “Azillo Muito Louco”. A história é uma adaptação do conto O Alienista, de Machado de Assis. O padre Simão chega a Paraty e funda um hospício para cuidar dos loucos da cidade. Mais tarde, chega à conclusão de que os internos estão sãos e as pessoas consideradas sadias é que deveriam ser consideradas loucas. Assim como no conto de Machado de Assis, o filme faz uma sátira da psiquiatria, mas também apresenta uma crítica velada ao regime militar instaurado no Brasil após o golpe de 1964.
“Tenda dos Milagres”, de 1977, é uma adaptação do romance de Jorge Amado publicado em 1969 na Bahia que descreve cenas do início do século XX, onde Pedro Archanjo, o ojuobá (olhos de Xangô) do Candomblé, mulato, capoeirista, tocador de violão e bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, defende os direitos dos negros e mestiços afrodescendentes. À medida que as teorias de Archanjo de mistura de raças são redescobertas pelo público, torna-se evidente que o racismo ainda está fortemente arraigado na cultura brasileira.
Por fim, em 1993 Nelson roda “A Terceira Margem do Rio”. O filme é baseado no conto de mesmo título do livro Primeiras Estórias (1962) de João Guimarães Rosa, onde um homem de meia-idade deixa sua família e amigos para viver isolado em uma canoa no meio de um rio, na região central do Brasil, e jamais volta a pisar em terra firme. Quando nasce Nhinhinha, sua neta, e que tem poderes mágicos, isso vai despertar grandes emoções.
“Azillo Muito Louco”, 1970, “Tenda dos Milagres”, 1977, “A Terceira Margem do Rio”, 1993
Cenas de “Azillo Muito Louco”, 1970
Cenas de “Tenda dos Milagres”, 1977
O legado para o cinema brasileiro
Nelson Pereira dos Santos é, sem dúvida, um dos maiores cineastas da história do cinema brasileiro, talvez o que mais contribuiu, fazendo filmes, para a nossa cultura, inclusive com grandes adaptações literárias. Seus filmes dialogam com tendências modernas – em particular o neorrealismo Italiano – ao mesmo tempo em que lidam, diretamente, com uma identidade legitimamente brasileira.
Mais do que simplesmente celebrar a cultura do nosso país, os filmes do realizador buscam raízes populares e jogam nas telas um ideário nacionalista. Seus filmes tensionam os dramas de seus personagens com a realidade crua à sua volta. Foi precursor de um novo cinema no Brasil preocupado com o humanismo, com as expressões culturais diversas e com os dramas sociais do povo brasileiro.
As ideias e os métodos de Nelson Pereira dos Santos foram mais do que essenciais para o surgimento do movimento do Cinema Novo no Brasil, já que o cineasta, em vários sentidos, preparou o terreno para obras essenciais que surgiriam a partir da década de 60. Sua influência foi enorme em outros talentosos cineastas brasileiros como Glauber Rocha e Cacá Diegues.
Talvez a principal diferença de Nelson para outros diretores brasileiros modernos seja o seu apreço por um cinema mais clássico, mais linear. Seu cinema não rompia com os arcos dramáticos tradicionais, mas suas histórias eram ousadas, sempre buscando uma aproximação direta com a realidade. Seus filmes levantavam temas fecundos de nossa cultura, como se ele quisesse desnudar nossa brasilidade, a alma de nossa cultura nacional-popular.
O cineasta Nelson Pereira dos Santos em ação
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