Filme “Macunaíma” de Joaquim Pedro de Andrade, 1969
Créditos do filme
Filme: Macunaíma, 1969
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
História: Mário de Andrade
Elenco: Grande Otelo, Paulo José, Dina Sfat, Jardel Filho, Rodolfo Arena, Milton Gonçalves
Alegoria, tropicalismo e modernismo antropofágico: Um retrato de um país devorado em si mesmo
Informações iniciais e o enredo do filme
Macunaíma é um filme brasileiro, de 1969, do gênero comédia e fantasia, escrito e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e baseado na obra homônima de Mário de Andrade. Conta com Paulo José, Dina Sfat, Jardel Filho, Grande Otelo, Rodolfo Arena e Milton Gonçalves nos papéis principais. O filme segue a história de Macunaíma, um anti-herói preguiçoso, descrito como “herói da nessa gente”, “herói sem nenhum caráter”, e ainda “representante do povo brasileiro”, um indígena que nasce negro e já adulto (Grande Otelo) em meio à selva amazônica, torna-se branco (Paulo José) e vai para a cidade grande (São Paulo), conhecendo prostitutas, guerrilheiros, capitalistas e enfrentando vários tipos de inimigo que encontra pelo caminho.
Uma vez lá, ele se torna uma espécie de dândi, se apaixonando por Ci (Dina Sfat), uma revolucionária que morre em um bombardeio acidental. Depois de roubar um industrial implacável (Jardel Filho), Macunaíma retorna à sua aldeia, onde encontra conhecimentos e bens recém-adquiridos de pouca utilidade.
O filme tem uma belíssima fotografia, cores fortes e variadas, com ênfase nas cores da bandeira brasileira.
Macunaíma nasce preto nas entranhas do Brasil
Sobre o Diretor do filme e o escritor do livro
Joaquim Pedro de Andrade foi um dos grandes cineastas do Cinema Novo no Brasil. Seu estilo era complexo. Foi um iconoclasta radical ao desconstruir mitos, moral e farsas brasileiras. Combatia o cinema tradicional e alienado e propunha uma reflexão estrutural do país numa linguagem que oscilava entre um realismo histórico muito crítico em relação aos valores conservadores do país e uma alegoria aos símbolos e ícones nacionais.
Na verdade, seu cinema era profundamente nacionalista, impregnado de uma brasilidade que vem da revolução cultural propagada pela Semana de Arte Moderna de 1922, com traços tropicalistas e antropofágicos, um mergulho nas nossas raízes culturais como foi defendido pelos artistas modernistas. Aliás, seu apreço pela nossa cultura, principalmente literária, o fez realizar filmes baseados em contos e livros importantes, como foi o caso de “Macunaíma”.
O escritor Mário de Andrade escreveu o livro Macunaíma e foi um dos expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922 e um dos maiores representantes do modernismo cultural brasileiro que se seguiu. A criação do personagem “Macunaíma”, chamando-o de herói sem-caráter, ao mesmo tempo em que o caracterizava como uma espécie de síntese de nossas raízes brasileiras, surpreendeu a todos. O escritor fez uma crítica a um Brasil que se auto devorava, ao invés de se se impor culturalmente.
O Diretor do filme Joaquim Pedro de Andrade
O escritor Mário de Andrade, autor do livro “Macunaíma”
Mergulhando no filme e em sua simbologia
O filme “Macunaíma”, de 1969, foi realizado num período em que o Brasil estava mergulhado numa ditadura militar que, entre outras coisas negativas, criou um contexto de muita repressão e censura. Isso explica o fato de que o filme tenha uma linguagem alegórica, onde as questões políticas estão nas entrelinhas dos personagens, dos diálogos e das imagens; tropicalista, no uso de cores fortes, misturadas e num quase deboche; e antropofágica, no sentido de auto devoração de valores, que o próprio livro manifesta.
O Macunaíma do filme representa o típico brasileiro, que acaba sendo devorado pelo sistema (à época, apesar do autoritarismo militar, muitos brasileiros eram tragados pelas “maravilhas” do milagre econômico). Tem-se a estória de um brasileiro que foi “comido” pelo Brasil. Isto é, pelas relações de trabalho, pelas relações sociais e econômicas que ainda eram basicamente antropofágicas. Resumindo, o Diretor Joaquim Pedro de Andrade afirma ser o seu Macunaíma um filme sobre consumo, num sentido mais antropofágico do que materialista.
Os principais personagens são simbolicamente muito bem definidos: Temos o Macunaíma nascido preto nas entranhas selvagens do país (Grande Otelo) e com mãe índia, se referindo à pobreza e às nossas raízes indígenas e africanas; temos o Macunaíma que mudou de cor milagrosamente para branco (Paulo José), se referindo às nossas raízes brancas portuguesas e hoje mais dominantes; uma guerrilheira mulher, se referindo às próprias guerrilhas políticas que aconteciam no Brasil; e um industrial implacável, se referindo ao nosso capitalismo selvagem.
O ator Grande Otelo interpreta o Macunaíma preto das entranhas do Brasil, pobre e com muita preguiça
O ator Paulo José interpreta o Macunaíma branco, o herói sem caráter, devorador do sistema e devorado pelo sistema e vestido de Brasil
A atriz Dina Sfat interpreta a guerrilheira Ci
O ator Jardel Filho interpreta o gigante industrial capitalista implacável (à direita)
Considerações finais
Uma questão crucial do filme é o embate entre o industrial, capitalista e perverso gigante Venceslau Pietro Pietra e Macunaíma, que claramente representa os valores autóctones, nacionais, contra o sistema opressor. Na cena da feijoada, na casa de Venceslau Pietro Pietra, Macunaíma, vestido com as cores da bandeira nacional, vai ao cassarão do gigante. Lá, consegue recuperar a muiraquitã (um símbolo nacionalista) e derrubar Venceslau Pietro Pietra na água fervente em que era preparada uma feijoada de carne humana.
Macunaíma acredita-se vitorioso sobre o sistema opressor e, desse modo, apodera-se de bens de consumo, como troféus, sendo, contudo, justamente por isso derrotado pelo capitalismo, que o assimila. Macunaíma era um resistente que tentava devorar quem o devorava, mas acaba sendo absorvido. Nesse sentido, os contestadores do sistema opressor são industrializados pelos órgãos de divulgação e passam a ser consumidos, isto é, comidos, como todos aqueles que aceitam.
O banquete de carne humana, embate entre Macunaíma e o gigante industrial
Enfim, quem pode come o outro. Macunaíma é um sujeito que foi comido pelo Brasil. Talvez por isso, depois da vitória sobre o gigante industrial, o protagonista apareça com roupa estilo country americano, carregando diversos bens. Macunaíma, portanto, não é ainda o herói moderno nacional, pois a ele falta uma visão mais geral, mais ambiciosa e mais consciente. Ela dá sempre os seus golpes com objetivo limitado, pessoal, individualista.
Segundo o Diretor do filme, Joaquim Pedro de Andrade: “O herói moderno é uma espécie de encarnação nacional, cujo destino se confunde com o próprio destino de seu povo. Uma das suas características fundamentais é a consciência coletiva. Ao contrário de Macunaíma, ele terá de encarnar um ser moral, no sentido de estar possuído por toda uma ética social”.
O filme foi a cara do Brasil num duro contexto político de fins dos anos 60, com uma esquerda derrotada e reprimida por uma Ditadura militar, e muitas perplexidades e angústias.
O herói em processo antropofágico, de volta às entranhas do Brasil
Joaquim Pedro de Andrade filmando “Macunaíma”, 1969
Filme completo de “Macunaíma”, 1969