O cinema brasileiro no século XXI: Parcerias privadas, agência federal e filmes selecionados da primeira década
A primeira década do século XXI foi muito promissora para o cinema brasileiro. A produção cinematográfica passou a ter investimentos do setor privado, ações federais, incentivos fiscais e talento de diretores. Parcerias entre novas produtoras também abriram novos caminhos de fomento aos filmes. Iniciando um novo ciclo de expansão com boa capacitação financeira e tecnológica, o cinema nacional brilhou e conseguiu realizar alguns filmes de muito sucesso de público e que ficaram rotulados de Blockbusters do Brasil.
A criação da Globo Filmes
Já em 1998, no andamento do cinema da retomada, o Grupo Globo criou seu braço cinematográfico: A Globo Filmes. A empresa atua em parceria com outras produtoras independentes nacionais e distribuidoras nacionais e internacionais e foi muito importante para um novo ciclo de produções cinematográficas no Brasil.
Preocupada em desenvolver projetos que aproximem cada vez mais o público brasileiro do cinema nacional, a Globo Filmes já produziu um leque diversificado de gêneros cinematográficos, com destaque para três filmes de muito sucesso: “O Auto da Compadecida”, 2000, dirigido por Guel Arraes, artista oriundo da Televisão; “Cidade de Deus”, 2002, dirigido por Fernando Meirelles; e “O Homem Que Copiava”, 2003, dirigido por Jorge Furtado.
Embora também se apoie no sistema de produção através da captação de recursos das leis federais de incentivo à cultura, especialmente a Lei do Audiovisual, em parceria com produtoras independentes responsáveis pela captação de recursos e produção física dos longas, a Globo Filmes também realiza produções cinematográficas sem a necessidade de utilização de dinheiro público, através de investimento próprio e patrocínios.
Três filmes de sucesso de público e reconhecimento artístico produzidos pela Globo Filmes
O início do século XXI começou muito bem para o cinema nacional. Em 2000, foi realizado o filme “O Auto da Compadecida”, dirigido por Guel Arraes. O filme é baseado na peça teatral de mesmo nome de 1955 de Ariano Suassuna e conta uma história de dois nordestinos, João Grilo (Matheus Natchergaele), um sertanejo pobre e mentiroso, e Chicó (Selton Mello), o mais covarde dos homens. Ambos lutam pelo pão de cada dia. O filme é muito divertido e expõe vários personagens de nossa cultura popular no pequeno vilarejo de Taperoá, no sertão da Paraíba.
Em 2002, um grande filme inovador na estética e na narrativa foi rodado pelo diretor Fernando Meirelles: “Cidade de Deus”. O filme retrata o crescimento do crime organizado na Cidade de Deus, uma favela muito perigosa do Rio de Janeiro. O filme narra a vida de diversos personagens marginais e eventos bombásticos que se entrelaçam no decorrer da trama, misturando tráfico de drogas e violência juvenil. Tudo pelo ponto de vista de Buscapé (Alexandre Rodrigues), o protagonista-narrador que cresceu em um ambiente muito violento.
Em 2003, o cineasta gaúcho Jorge Furtado rodou “O Homem que Copiava”, mais um filme de sucesso. O filme foi ambientado na zona norte da cidade de Porto Alegre e conta a história de André (Lázaro Ramos), um jovem operador de fotocopiadoras que se apaixona pela vizinha Sílvia (Leandra Leal) e precisa de grana para atraí-la. Daí, ele passa de falsificador de dinheiro a assaltante. Por um capricho do destino, vira milionário.
Três filmes de sucesso produzidos pela Globo Filmes: “O Auto da Compadecida”, 2000, “Cidade de Deus”, 2002, “O Homem Que Copiava”, 2003
Cenas de “O Auto da Compadecida”, 2000
Cenas de “Cidade de Deus”, 2002
Cenas de “O Homem que Copiava”, 2003
Os diretores, pela ordem: Guel Arraes, Fernando Meirelles e Jorge Furtado
A criação da ANCINE
Além da maior participação do setor privado na produção de filmes nacionais, o Governo Federal criou em 2001 a Agência Nacional do Cinema (Ancine), um órgão oficial constituído como agência reguladora, com sede na cidade de Brasília, cujo objetivo é fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofonográfica do Brasil. Passou a ser dotada de autonomia administrativa e financeira e vinculada, com a extinção do Ministério da Cultura em 2019, ao Ministério da Cidadania.
A Ancine executa a política nacional de fomento ao cinema, fiscaliza o cumprimento da legislação pertinente, promove o combate à pirataria de obras audiovisuais e regula as atividades de fomento e proteção à indústria cinematográfica e videofonográfica, resguardando a livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação. Além disso, a Ancine é responsável pela distribuição dos recursos fiscais definidos pela Lei do Audiovisual.
Uma seleção de filmes brasileiros do período de 2000 a 2009
Além de filmes de maior apelo popular produzidos pela Globo Filmes, outros mais experimentais e de conteúdo mais complexo foram realizados na primeira década do século XXI, trafegando em gêneros diferentes e alguns com temáticas transgressoras. Houve também produções com linguagem inovadora e resgate de nosso passado político. Selecionamos 09 filmes representativos do período de 2000 a 2009.
Em 2000, um filme de drama psicológico foi rodado: “Bicho de Sete Cabeças”, dirigido por Laís Bodanzki. O filme foi muito premiado em Festivais e conta a história de Neto (Rodrigo Santoro), um jovem que é internado em um hospital psiquiátrico após seu pai (Othon Bastos) descobrir maconha em seu casaco. Lá, Neto é submetido a situações abusivas. O filme, além de abordar a questão dos maus tratos nas instituições psiquiátricas, também reflete sobre a questão das drogas e a relação entre pai e filho e as consequências geradas na estrutura da família.
O cineasta Vladimir Carvalho, um ícone dos documentários brasileiros, rodou em 2001 “Barra 68 – Sem Perder a Ternura”, onde resgata um período de resistência política e um triste passado de repressão. No documentário, recheado de entrevistas com figuras da história da época e trabalhando com imagens de arquivos, Vladimir faz uma reflexão sobre o papel do movimento estudantil na luta contra a ditadura e trata da invasão da Universidade de Brasília por tropas militares. É um retrato histórico importante, que busca esclarecer o contexto político.
Um diretor oriundo da Televisão, Luiz Fernando Carvalho, com boas novelas e minisséries, filmou em 2001 o experimental e perturbador “Lavoura Arcaica”. O filme narra em primeira pessoa a história de André (Selton Mello), que se rebela contra as tradições agrárias e patriarcais impostas por seu pai e foge para a cidade. Ele quer ser o profeta de sua própria história e viver com intensidade. Ao fazer uma jornada sensível à sua infância, ele contrapõe os carinhos da mãe com os desmandos autoritários do pai. O filme mostra o forte conflito entre gerações.
“Bicho de Sete Cabeças”, 2000, “Barra 68”, 2001, “Lavoura Arcaica”, 2001
Cenas de “Bicho de Sete Cabeças”, 2000
Cenas de “Barra 68”, 2001 (documentário completo)
Cenas de “Lavoura Arcaica”, 2001
Os diretores, pela ordem: Laís Bodanzki, Vladimir Carvalho, Luiz Fernando Carvalho
Um novo e super talentoso diretor surgiu: Cláudio Assis. Com um cinema transgressor, Assis rodou “Amarelo Manga” em 2002 e expôs mazelas sociais, minorias e desencantos. A obra retrata a vida de alguns moradores do centro histórico de Recife, guiados pelas suas paixões e frustrações do dia a dia. Repleto de tipos populares, vida suburbana, sobrevivência, religião e traições, o filme é muito bem conduzido numa atmosfera mundana e marginalizada e fica uma pergunta periférica: O ser humano é estômago e sexo?
O diretor Rosemberg Cariry já havia demonstrado muito talento no trato das questões regionais do país, especialmente acerca do Nordeste, em filmes de cultura, história e costumes populares. Em “Lua Cambará”, lançado em 2002, Cariry se inspira na lenda de Lua Cambará (Dira Paes), que foi uma matriarca escravagista que imperou no final do século XIX numa região dominada por latifundiários, senhores da lei, da vida e da morte. Filmado no sertão do Ceará, o filme retrata uma mulher que, de forma sangrenta, conquista o mundo dos homens, mas, em troca disso, termina perdendo a sua própria alma.
Alice de Andrade, filha de Joaquim Pedro de Andrade (grande cineasta do Cinema Novo), rodou um filme como uma pequena ópera de tipos humanos de Copacabana: Um surfista folgado, um cafetão, uma garota de programa e um garoto sonhador. Em tom de humor e de farsa, mas também incentivando a reflexão social, o filme “O Diabo a Quatro” trata de tráfico de drogas, violência urbana e a ilusão da fama em torno de quatro esdrúxulos mosqueteiros que se entrelaçam num caldeirão de fantasmas e falsas aparências, o avesso do Rio cartão-postal.
“Amarelo Manga”, 2002, “Lua Cambará”, 2002, “O Diabo a Quatro”, 2004
Cenas de “Amarelo Manga”, 2002
Cenas de “O Diabo a Quatro”, 2004
Os diretores, pela ordem: Cláudio Assis, Rosemberg Cariry, Alice de Andrade
Um novo diretor de cinema, mas já experiente na televisão, Andrucha Waddington, realizou o belo e sensível “Casa de Areia”, em 2005. O enredo se passa no começo do século XX: um pai de família português (Ruy Guerra) leva esposa (Fernanda Montenegro) e filha grávida (Fernanda Torres) para construir vida nova em terras adquiridas. Ao verificar que se tratam de terras inóspitas, rodeadas de areia por todos os lados, mãe e filha terão que lutar pela sobrevivência e enfrentar muitos perigos com a ajuda de Massu (Seu Jorge), um sobrevivente do local
“Zuzu Angel”, dirigido em 2006 pelo competente cineasta Sérgio Rezende, é um filme de drama biográfico que resgata a luta contra a ditadura militar no Brasil e seus protagonistas. Zuzu Angel (Patrícia Pillar) foi uma estilista brasileira, mãe do militante político Stuart Angel (Daniel de Oliveira) que foi torturado e assassinado pela ditadura. Na virada dos anos 60 para os anos 70, o estudante Stuart Angel passou a integrar as organizações clandestinas que combatiam a ditadura. A partir daí, sua mãe Zuzu entraria em uma guerra contra o regime militar pela recuperação do corpo de seu filho.
Por fim, em 2007, um filme badalado e polêmico assombrou o mundo do cinema no Brasil: “Tropa de Elite”, dirigido por José Padilha. O filme é um drama policial que expõe a atuação das forças policiais especiais em confrontos com favelas no Rio de Janeiro e protagonizado por Wagner Moura. Ao mostrar embates que envolvem tráfico de drogas e violência urbana, o filme também abordou as práticas de tortura por parte dos policiais, que, ao invés de heróis, são vilões em virtude de suas atitudes violentas frente à população pobre e aos moradores de favelas.
“Casa de Areia”, 2005, “Zuzu Angel”, 2006, “Tropa de Elite”, 2007
Cenas de “Casa de Areia”, 2005
Cenas de “Zuzu Angel”, 2006
Cenas de “Tropa de Elite”, 2007
Os diretores, pela ordem: Andrucha Waddington, Sérgio Rezende, José Padilha
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