Clássicos do Cinema
“O Homem que Matou o Facínora”: A transição do velho oeste americano com seus mitos e lendas

“O Homem que Matou o Facínora”: A transição do velho oeste americano com seus mitos e lendas

Filme: O Homem que Matou o Facínora, 1962

Direção: John Ford

Elenco: James Stewart, John Wayne, Lee Marvin, Vera Miles, Edmond O’Brien

Sobre o diretor do filme

O diretor John Ford foi o maior artista cinematográfico do velho oeste americano. Por suas lentes passaram histórias sobre a saga da colonização americana. Com seus filmes, os mitos americanos foram retratados e personagens fizeram história, ao mesmo tempo em que lendas eram transformadas em verdades. John Ford foi um exímio cineasta de histórias que contribuíram para o entendimento do “ser americano” e seus heróis e bandidos.

John Ford tratou dos índios, da cavalaria, das caravanas, dos colonos, dos pistoleiros, das famílias do velho oeste, dos lugares memoráveis como o Monument Valley, das lutas pela sobrevivência, enfim, dos protagonistas de uma região que sangrou para prosperar e de um período que o tempo levou. E é exatamente esse tempo e esse período que está terminando, ou seja, a transição do velho oeste para o novo oeste que John Ford trata em sua obra prima “O Homem que Matou o Facínora”.

Cartaz do filme e o diretor John Ford, o mestre do velho oeste americano

Um pouco do Velho Oeste

O Velho Oeste americano já foi palco de inúmeros filmes. O sentido desse interesse do cinema para contar histórias sobre essa região dos Estados Unidos está na importância que ela teve para o desbravamento de terras e para a própria colonização americana. Até a metade do século XIX, os EUA se resumiam às porções de terra à leste do Rio Mississipi.   

Após a corrida do ouro na Califórnia no século XIX, o governo federal americano, a partir de 1862, incentivou a migração para o oeste, oferecendo terras da região para quem topasse ficar lá. Daí viriam as caravanas de colonos e todos os mitos do cinema do faroeste. Ouro, fazendas de plantações e criadores de gado ditavam a dinâmica da luta pela prosperidade e todos os seus conflitos inerentes. A mitologia de heróis e bandidos foi então construída.

Mas porque estamos falando disso? Para mostrar que esse mundo do velho oeste entrou em saturação e foi ultrapassado por um modelo de desenvolvimento progressista e que construiria a modernidade dos Estados Unidos. Esse é o tema do clássico filme “O Homem que Matou o Facínora”, dirigido por John Ford em 1962.

Imagens antigas de como era o velho oeste americano

Sobre o enredo do filme e seus personagens

“O Homem que Matou o Facínora” (no inglês, The Man Who Shot Liberty Valance, 1962, John Ford) é um excelente filme sobre a epopeia americana da transição do velho para o novo oeste, além de emparedar mitos americanos da colonização. O enredo: Muito tempo depois, Ransom Stoddard, um Senador já idoso, retorna à cidade de Shinbone, Colorado, para o enterro de seu amigo Tom Doniphon. Num longo flashback, Ransom conta a história de Tom, ligada à sua própria história, e revela a verdade dos fatos: Sua ascensão política e o papel de seu amigo.

Ransom Stoddard, já um velho Senador, conta a verdadeira história em flashback

O que importa no filme são os personagens, complexos e simbólicos, e o que eles representam na saga americana pela prosperidade. Ransom (James Stewart) é um jovem advogado que luta com resiliência por seus ideais de ordem, justiça e progresso. Tom (John Wayne) é um vaqueiro honesto que segue a visão de um oeste ainda movido pela tradição e honra e onde a pistola “justa” pode resolver conflitos.

Então, na contramão do jovem advogado, surge Liberty Valance (Lee Marvin), um malfeitor na linha dos notáveis bandidos do oeste selvagem, para quem não existem leis além das balas de um revólver. Transitando entre Ransom e Tom está Hallie (Vera Miles), uma colona que se unirá ao vencedor no trem da história. Por fim, um personagem muito importante na saga americana pela civilização é Dutton Peabody (Edmond O’Brien), o embrião da imprensa livre.

O facínora Liberty, o vaqueiro Tom, o advogado Ransom

A imprensa livre na figura de Peabody (à esquerda), e a heroína Hallie, modelo de colona que abraça literalmente os ideais do progresso

Refletindo sobre mitos do velho oeste e a transição para a modernidade

No filme “O Homem que Matou o Facínora” não vemos cenários grandiosos, nem índios, tampouco soldados da cavalaria, heróis em perseguições, tiroteios infernais, grandes brigas no Salloon ou mesmo ações de tirar o fôlego. Não. O que assistimos é a uma ótima reflexão sobre mitos do velho oeste e as contradições de um processo histórico que gerariam a modernidade americana. O filme é predominantemente narrado em ambientes fechados, como restaurante, escola, casa e escritório de jornal.

Apesar da ausência da narrativa típica de um filme de ‘bangue bangue’ movimentado, todo o velho oeste se encontra nas imagens e na história do filme. Vamos a ele. Logo nas cenas iniciais, o jovem advogado Ransom é surrado pelo bandido Liberty Valance, que representa o mito do oeste selvagem causador de problemas e dores para a colonização americana. Ele ainda existe, mas deve ser eliminado. Mas quem o eliminará? Quem destruirá o mito do mal do oeste?

Durante a narrativa, e à medida que o modernista Ransom começa a se virar para sobreviver como lavador de pratos e defender seus ideais como educador em uma escola, um personagem chave aparece: O vaqueiro Tom Doniphon. Mas quem é ele? Ele simboliza os colonos americanos, arraigados em honra e tradição, e que lutaram com o suor do rosto no desbravamento de terras e pela grandeza do velho oeste. E balas de revólveres serviram bem aos objetivos, desde que na forma de uma “violência justa”.

Já Ransom, o advogado idealista, representa o futuro da nação americana que terá que derrotar o mal e superar a tradição colonial. No filme, Ransom se preocupa com a educação do povo da cidade e com o papel da imprensa no combate às forças do atraso. Mas ele não tem as habilidades para trafegar no processo histórico contraditório de vencer a selvajeria e superar aquilo que significava o modelo de desenvolvimento americano. Mas, ele terá a  ajuda de Tom.

Da esquerda para a direita e o que representam os três personagens: Liberty, o oeste selvagem; Ransom, o futuro político americano; Tom, o modelo honrado da colonização

O declínio do velho oeste, a democracia e a tradição esquecida

O filme “o Homem que Matou o Facínora” faz uma elegia, ou seja, um poema triste, doloroso, mas realista e encantador sobre a transição do velho oeste e seus dilemas.  O futuro inevitável dos Estados Unidos com ordenamentos legais e democracia vai se afunilando ao longo da história. Mas o grande achado do filme é mostrar a contradição do mito americano de prosperidade em que, ao mesmo tempo que enaltece a tradição colonial do país, também a esconde e joga seus erros para o esquecimento.

Esse mito contraditório é nítido no personagem de Tom Doniphon. Ao simbolizar o papel da tradição colonial americana que vai processar a própria transição do velho oeste para a modernidade, seja matando Liberty Valance, o mal dentro do mito americano, seja deixando que o advogado Ransom, o futuro da nação americana, leve a fama de herói matador e o incentivando em sua eleição como representante do povo no Congresso dos Estados Unidos, Tom Doniphon, de herói do modelo de colonização americana, vira um anti-herói que será esquecido.

No processo de democratização da cidade de Shinbone, um exemplo do que estava acontecendo em muitos lugares dos EUA, dois personagens são fundamentais: Peabody, a imprensa, e Tom, a tradição. Peabody poderia perfeitamente ser o representante eleito pela comunidade. No entanto, ele defende Ransom pela sua resiliência, por ser formado e por ser o matador (?) do facínora. Da mesma forma, Tom, a tradição colonial, o apoia, mas será esquecido e enterrado. Tom sabe que a chegada da modernidade significa o seu desaparecimento.

A festa da democracia americana e a eleição dos representantes políticos da cidade

O poder da lenda

Ransom Stoddard, de lavador de pratos a Senador, carregou a mentira de que matou o facínora por tanto tempo e que virou uma lenda. E continuou assim. Além da carreira política erguida por uma mentira, mas vamos chama-lo de herói do imaginário popular, Ransom conquistou também o amor de Hallie, um modelo feminino de antigos colonos, que foi cativada pelos seus ideais modernos e democráticos. Já Tom, e seu mundo, sumiram, mas ele viveu com a honra de um desbravador de terras do velho oeste.

Terminado o flashback e o depoimento, já no final, Ransom Stoddard, o Senador em Washington, pergunta ao editor do jornal que o entrevistou se ele vai publicar a verdade dos fatos. O editor o responde: “Quando a lenda é maior que a história, publique-se a lenda”. A imprensa, pilar da democracia e da verdade, se aliou à lenda. E assim se criam novos mitos. A política se alimenta daquilo que se imagina e não daquilo que de fato é.

A verdadeira narrativa do velho oeste que se prolongou na própria democracia americana se pautou em mitos e em lendas que se tornaram verdades. Essa é a mensagem do mestre John Ford no término da sua obra prima “O Homem que Matou o Facínora”, seu testamento cinematográfico.

Tom e Ransom, os únicos que sabem a verdade, e o enterro de Tom Doniphon que simboliza a morte do próprio velho oeste

E quem matou o facínora?

Aí está quem matou o facínora, mas o que vale é a lenda

O diretor John Ford (no centro), e os atores James Stewart (à esquerda) e John Wayne (à direita) no set de filmagens de “O Homem que Matou o Facínora”

Cenas de “O Homem que Matou o Facínora”, 1962

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