Grandes Diretores
O cinema de Federico Fellini: Sonhos e imaginação para navegar nas dores da realidade

O cinema de Federico Fellini: Sonhos e imaginação para navegar nas dores da realidade

Um breve perfil, o dom para desenhos e caricaturas e o início como redator

Federico Fellini nasceu em 1920 em Rimini, uma cidade costeira italiana na região da Emília-Romagna, e faleceu em 1993 em Roma. Conhecido pelo estilo peculiar que funde fantasia e sonhos, ele é considerado uma das maiores influências do cinema e um dos mais admirados diretores do século XX. Sua marca pessoal foi tamanha que se criou o adjetivo “felliniano” para traduzir seu cinema de extravagâncias e excentricidades.

Durante seu período escolar, Fellini já demonstrava uma grande aptidão para desenhos e marionetes. Ainda na infância, Fellini conheceu o circo que o encantou em toda a sua vida. O dom para o desenho se desenvolveria e ele se tornou um grande caricaturista, um tipo de arte que ele transportaria para o cinema na construção de personagens exagerados e cenários pitorescos.

No ginásio, nos anos 30, Fellini não dava bola para as aulas e começou a investir na carreira de caricaturista, abrindo uma loja de retratos em sua cidade natal e a escrever piadas. Esse seu novo lado de escritor humorístico o fez melhorar suas qualidades de redator e partiu para Roma com a intenção inicial de fazer Faculdade de Direito, apenas para agradar os pais.

Em Roma, Fellini, sem dinheiro, acabou encontrando trabalho como repórter no jornal Il Piccolo, e mais tarde se estabeleceu na Marc’Aurelio de 1939 a 1942, uma revista quinzenal de humor altamente influente que é considerado como “o momento determinante na vida de Fellini”. Nessa revista, ele interagiu com escritores, artistas de gags e roteiristas. Esses encontros acabaram gerando oportunidades no show business e no cinema. 

A revista Marc’Aurelio, onde Federico Fellini trabalhou na década de 40

Desenhos de Federico Fellini

O rádio, Giulietta Masina e o início no cinema

Fellini progrediu rapidamente para colaborações em filmes nos estúdios da Cinecittà em Roma. Em 1941, ele publicou um livreto de histórias e caricaturas descrevendo as aventuras absurdas de Pasqualino, um alter ego. A arte da caricatura se fez presente em toda a sua carreira cinematográfica.

Trabalhando também para o Rádio, Fellini conheceu sua futura esposa Giulietta Masina em um estúdio na emissora de rádio italiana EIAR em 1942. Foi um casamento que durou até a sua morte e Giulietta Masina foi uma de suas musas em alguns de seus filmes. Com Masina, que era atriz de teatro, Fellini construiu uma de suas personagens mais marcantes e populares.

Após uma experiência cinematográfica traumática na Líbia durante a guerra em 1942, Fellini continuaria sobrevivendo como caricaturista após a libertação de Roma dos nazistas em 1944. Sua reputação como desenhista e escritor de piadas o levou a conhecer o diretor de cinema Roberto Rossellini, um dos fundadores do movimento do neorrealismo italiano.

Fellini foi convidado a ser co-roteirista do clássico “Roma, Cidade Aberta”, de 1945, e assistente de direção de outro clássico do neorrealismo, “Paisá”, de 1946, ambos dirigidos por Rossellini. As portas do cinema estavam abertas e ele não desperdiçou.

O diretor Federico Fellini e seu chapéu característico

A atriz Giulietta Masina, esposa de Fellini

Os artistas mambembes, os saltimbancos, o picadeiro do circo

Desde muito jovem, Fellini se encantou com o mundo do circo e com os artistas saltimbancos ou de vaudeville. Dessa influência, selecionamos três filmes

Em 1950, Fellini dirige seu primeiro filme juntamente com o diretor Alberto Lattuada: “Mulheres e Luzes”. A história segue uma trupe de artistas mambembes (ou de vaudeville). Lá, enquanto tentam alegrar as pessoas, tristezas e contratempos surgem na vida dos artistas itinerantes. O filme também faz uma crítica à busca de vedetismo individual, ao glamour, que se contrapõe ao espetáculo coletivo. Fellini, ao mesmo tempo em que expõe seu fascínio pelo mundo do entretenimento, explora a realidade muitas vezes difícil que se impõe nos bastidores da arte.

Em 1954, Fellini retoma o universo dos artistas saltimbancos e narra uma história de muita melancolia em seu filme “A Estrada”. A personagem chapliniana Gelsomina (Giulietta Masina) é vendida a Zampano (Anthony Quinn), um artista mambembe que percorre lugares com seus shows de força bruta. Maltratada pelo ‘dono’, ela acaba encontrando a gentileza e vislumbrando um futuro diferente ao conhecer um equilibrista gentil. Fellini mostra pobreza e submissão, a vida dura de artistas de poucos recursos, mas também apresenta momentos de pura magia e encanto.

Em 1970, Fellini mergulha no mundo dos palhaços de circo num estilo de documentário. O filme se chama “Os Palhaços” e possui uma narrativa livre. O que importa é a diversão. A sucessão de personagens cômicos, de números e encenações, vai ampliando a rica narrativa e a nossa satisfação. O filme opta pela liberdade de atuação dos artistas de circo e a capacidade de conseguir retratar momentos reais. Fellini está em casa, no seu universo de fantasias, e também retrata palhaços que caíram na obscuridade e na melancolia.

“Mulheres e Luzes”, 1950, “A Estrada”, 1954, “Os Palhaços”, 1970

Cenas de “Mulheres e Luzes”, 1950

Cenas de “A Estrada”, 1954

Cenas de “Os Palhaços”, 1970

O neorrealismo felliniano

Fellini começou no cinema no neorrealismo italiano, um movimento do pós-guerra que expôs as mazelas sociais e propagou o humanismo. Sofreu essa influência em alguns filmes, mas já mostrando a sua marca pessoal, caricatural. Selecionamos três filmes.

Em 1952, Fellini rodou “O Sheik Branco”, o primeiro filme em que dirigiu totalmente. Ainda que seja um embrião de seu universo particular, sua narrativa é de neorrealismo. A história trata do mundo das fotonovelas, quando uma mulher provinciana (Brunella Bovo) escapa de seu marido em Roma para encontrar com seu galã (Alberto Sordi). O choque entre a realidade cotidiana e as ilusões produzidas pela cultura de massa dão o tom ao filme, mas que também apresenta a pureza felliniana do afeto, quando prostitutas consolam o marido (Leopoldo Trieste), exausto em sua odisseia para encontrar a esposa. 

Em 1955, Fellini filma “A Trapaça”. Flertando com os gêneros policial e comédia, a história acompanha três trapaceiros: Augusto (Broderick Crawford), Picasso (Richard Basehart) e Roberto (Franco Fabrizi), que ganham dinheiro dando golpes em pessoas pobres enquanto têm que lidar com os próprios dramas pessoais. O filme possui claras influências da origem neorrealista de Fellini, fazendo os personagens perambularem por um Itália destruída pela guerra, sofrendo com a miséria e a fome. 

Em 1957, Fellini dirigiu o belo e sensível “Noites de Cabíria”. O filme retrata as dificuldades de sobrevivência e as desilusões amorosas de uma ingênua prostituta, Cabiria (Giulietta Masina), pelas noites de Roma. O filme exala humanismo e reflete sobre as condições sociais de pessoas do povo. E vai mais além, ao explorar um coração puro, magoado, mas confiante de uma pobre mulher, “Noites de Cabíria” se transforma em um filme sobre a esperança e a possibilidade de um verdadeiro amor.

“O Sheik Branco”, 1952, “A Trapaça”, 1955, “Noites de Cabíria”, 1957

Cenas de “O Sheik Branco”, 1952

Cenas de “A Trapaça”, 1955

Cenas de “Noites de Cabíria”, 1957

O provincianismo, o barroco, as memórias

Fellini jamais esqueceu de sua infância ou de seu passado. Nesse sentido, ele foi buscar na sua juventude as lembranças de sua vida e de um mundo que todos nós nos identificamos, mas que parece que não existe mais. Além disso, usou a linguagem barroca para expressar seus dilemas entre o mundano e o profano, especialmente ao refletir sobre a cidade eterna, Roma.

Em 1953, Fellini voltou aos tempos das indefinições de vida e sonhos da juventude numa província italiana, como que numa espécie de retorno ao seu ponto de partida. Estamos falando do filme “Os Boas Vidas”.  O filme acompanha um grupo de amigos que passam o seu dia-a-dia em farras e conquistas amorosas. Ainda que o grupo leve uma vida de inúteis, Fellini trata o assunto com carinho, sabedor de que a juventude não tem pressa, mas os acontecimentos e situações despertarão a necessidade de tomada de decisões, de escolhas e partidas.

Em 1972, Fellini filma “Roma”, seu retrato pessoal sobre a cidade eterna com suas recordações de um jovem provinciano. Não há ligação narrativa, o estilo vai do lirismo à sátira, do nostálgico ao truculento, do barroco ao anárquico, sem solução de continuidade. A fotografia é exuberante, os cenários são alucinantes. Há desfile de moda, Igreja, bordéis, tesouros arqueológicos, o amor livre da geração hippie, espetáculo do teatro de variedades, uma “carreata” de motocicletas por Roma à noite. Fellini exibe uma “fauna” humana fascinante e revelando a alma romana.

Em seu filme “Amarcord”, lançado em 1973, Fellini aborda o mundo de sua adolescência na sua cidade natal, nos anos do fascismo da década de 30. Filmando com carinho, afeto e compaixão, o filme tem uma narrativa divertida e comovente, e Fellini nos encanta com personagens insolentes, tocantes, engraçados, eternos. Construindo um mosaico de tipos humanos e situações do cotidiano, “Amarcord” nos conta várias histórias de aventuras, sonhos e esperanças onde o que vale mesmo é viver. O filme aborda sexualidade, comportamentos, política, religião numa linguagem caricatural e muitas vezes como uma anedota.

“Os Boas Vidas”, 1953, “Roma”, 1972, “Amarcord”, 1973

Cenas de “Os Boas Vidas”, 1953

Cenas de “Roma”, 1972

Cenas de “Amarcord”, 1973

Sonhos e delírios, o surreal, o grotesco

Fellini declarou que sofreu influência da psicanálise de Carl Jung e que passou a lidar com o universo feminino com mais delírios e exageros. Além disso, seu cinema mostrava tons surreais e as situações bizarras permeavam seu universo cinematográfico. Selecionamos três filmes alucinantes com essas questões.

Em 1963, ao se sentir pressionado e num impasse para decolar um novo filme, Fellini se aproveitou justamente disso para transformar sua crise no próprio filme, intitulado “8 e ½”. A história é cheia de sonhos e delírios e acompanha um problemático cineasta italiano, Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), que luta com a estagnação criativa. Oprimido por seu trabalho e vida pessoal, o diretor se refugia em seus pensamentos, que se concentram em seus amores, passados ​​e presentes, e trafegando num território de linguagem fantástica.

“Satyricon”, de 1969, é um filme adaptado da obra literária de Petrônio no século I e aborda a Roma clássica, repleta de imoralidade e decadência. Fellini construiu uma Babel de culturas e costumes em um tom surreal e psicodélico, bem à moda da época em que o filme foi produzido. Ao narrar as aventuras e desventuras de dois personagens que lutam pelo afeto de um terceiro, o filme é radical, teatralizado e expõe homossexualismo, pedofilia, antropofagia e rituais diversos.

Em 1980, Fellini filma “Cidade das Mulheres”. O filme segue num caminho de exploração surreal da sexualidade masculina e feminina e segue Snaporaz (Marcello Mastroianni), um passageiro de trem italiano que persegue uma bela mulher. Seguindo a adorável dama por uma floresta, Snaporaz acaba em um hotel povoado por mulheres reunidas para uma conferência feminista. Ele logo percebe que é uma presença indesejada e entra num redemoinho ultra feminino.

“8 e ½”, 1963, “Satyricon”, 1969, “Cidade das Mulheres”, 1980

Cenas de “8 e ½”, 1963

Cenas de “Satyricon”, 1969

Cenas de “Cidade das Mulheres”, 1980

A extravagância da vida, a morte artística, o cinema da nostalgia

Fellini sempre misturava imaginação com realidade, preferindo a primeira. Mesmo abordando a vida ou a morte e até mesmo o próprio cinema, Fellini era extravagante, tornava tudo artístico e se enchia de sentimentos, lembranças e nostalgia, geralmente usando a fantasia e a excentricidade. Selecionamos três filmes para expressar tudo isso.

Em 1960, Fellini realizou um filme que o tornou definitivamente um artista de renome internacional. Trata-se de “A Doce Vida”. Ao acompanhar um repórter (Marcelo Mastroiani) que vagueia pelos holofotes glamourosos e fofoqueiros da famosa Via Veneto em Roma, o filme tem cenas memoráveis e traça um perfil melancólico de personagens aparentemente de bem com a vida, mas, na verdade, profundamente vazios e perturbados. Por trás de uma fachada de diversão, Fellini expõe as mazelas existenciais num pedaço de Roma elitizado e alienado.

Após ler em um jornal sobre um funeral de uma artista que seria realizado em alto mar, Fellini desenvolveu a história do filme “E La Nave Va”, lançado em 1983. O filme é relatado por um jornalista desajeitado, mas adorável, Orlando (Freddie Jones), que conta que se trata de um cruzeiro fúnebre em um Transatlântico de luxo que dispersará as cinzas de uma famosa cantora de ópera. De resto, o filme é puro Fellini com anedotas e fofocas de uma grande variedade de tipos excêntricos, bizarros, engraçados, com direito a nobres, refugiados e até um rinoceronte.

Por fim, Fellini realizou “Entrevista” em 1987 tratando de seu universo cinematográfico com bagunças, lembranças e nostalgias na arte de fazer filmes. Fellini leva uma equipe de filmagem em uma viagem pela sua memória enquanto prepara seu próximo projeto neste documentário simulado. Um jornalista, que seria um falso Fellini na juventude, realiza uma entrevista enquanto são passadas cenas de filmes do seu passado. O filme também é uma homenagem de Fellini aos estúdios da Cinecitá, em Roma, onde realizou seus maiores clássicos.

“A Doce Vida”, 1960, “E La Nave Va”, 1983, “Entrevista”, 1987

Cenas de “A Doce Vida”, 1960

Cenas de “E La Nave Va”, 1983

Cenas de “Entrevista”, 1987

O legado para o cinema

Federico Fellini construiu um cinema povoado por sonhos e pela imaginação. A realidade das coisas era pintada para ser trafegada. As dores do real eram tratadas numa linguagem de fantasia e do fantástico que se soprepunham a qualquer análise social ou política.

Como um perito artesão, Fellini fabricava seus filmes para dar livre dimensão ao estado de espírito, não se prender às desilusões e incertezas, mas dar vasão aos sentimentos mais puros, mesmo que sejam delirantes, pois o delírio pode ser libertador.

Seus personagens eram profundamente humanos, tocantes, mesmo que apresentados com insolência, exageros e excentricidades. Tudo no final pode dar em alguma palhaçada. Trabalhando muito com a melancolia, Fellini consegue transformá-la num rosto alegre, terno. O afeto felliniano é simples, mas enorme, como um rosto alegre de um vira-lata, de uma prostituta ou de um mendigo.

Mesmo tratando de temas existenciais, ou até mesmo mortais, o cinema de Fellini não se rende à tristeza ou à captulação. Por visar sempre o que há de mais humano em seus personagens, seus dramas podem virar festa ou testemunhos de que lá na frente há esperança.

Para o cinema de Fellini, o melhor caminho não é explicá-lo, mas assistí-lo. Existe uma imagem, que apresentamos abaixo, que talvez sintetize o cinema de Fellini, contida no comovente filme “Amarcord”: Pessoas simples de uma pequena cidade que se alegram com a passagem de um navio iluminado.

Federico Fellini e Giulietta Masina

Fellini filmando

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