O cinema de Luís Buñuel: Revolução, religião, moral e burguesia num tom surrealista
Teve, desde cedo, uma grande sensibilidade em relação ao inusual e ao extraordinário, e facilmente se encantava com animais, plantas e fenómenos naturais, que observava atentamente, imbuído de uma religiosidade pagã. Foi também na infância que adquiriu um enorme fascínio pela morte, quando, inadvertidamente, se deparou com um burro apodrecido numa valeta.
Buñuel estudou num colégio de Jesuítas, cuja influência se faria sentir para o resto da sua vida e em muitos de seus filmes. Com a adolescência, perdeu a fé, tornando-se anticlerical e ateu, e, em 1915, foi expulso do colégio, tendo terminado os seus estudos secundários no Instituto de Saragoça, Espanha.
O cineasta Luís Buñuel em duas épocas diferentes
Anos em Madrid
Em 1917, Buñuel foi estudar em Madrid, instalando-se na prestigiada e elitista Residência de Estudantes, onde permaneceria até Janeiro de 1925. Aí conheceu várias luminárias das letras, artes e ciências espanholas e internacionais e conviveu com muitos daqueles que fizeram parte da famosa Geração de 27, tomando conhecimento das vanguardas artísticas e literárias da época, cubismo, dadaísmo e surrealismo.
Foi também na Residência que se tornou grande amigo de três camaradas e companheiros de boêmia que tiveram nele (e em quem ele teve) uma influência fundamental: O escritor Pepín Bello, o poeta Federico García Lorca e o pintor Salvador Dalí. Nesses anos, Buñuel tornou-se um fanático da cultura física e do atletismo. Frequentava, além disso, os cafés de Madrid e as suas tertúlias, como também os seus bordéis.
A turma de artistas de vanguarda em Madrid. Buñuel em cima à direita
O pintor Salvador Dalí, uma amizade turbulenta
Paris e o surrealismo
Em 1925, Buñuel foi viver em Paris, onde estudou cinema e trabalhou como assistente de vários realizadores entre os quais Jean Epstein. Conhece Jeanne Rucar Lefebvre (Lille, 29.02.1908 – México, 04.11.1994), sua futura mulher, com quem se casará em 1934.
No começo de 1929, Luís Buñuel e Salvador Dalí, utilizando o método surrealista do “cadáver esquisito”, escrevem o guião do filme que acabaria por ter o título de O Cão Andaluz. Buñuel roda-o em quinze dias e o filme estreia em Paris, perante a nata da sociedade e da intelectualidade francesa. O filme foi um sucesso e um escândalo. Toda a imagética surrealista (burros podres dentro de pianos de cauda, mãos cortadas, metamorfoses visuais, etc.) criara sensação e espanto.
Ainda em 1929, Buñuel e Dalí preparam um novo filme, A Idade do Ouro. Mas a colaboração e a amizade entre eles ficaram ensombradas. Buñuel acaba o guião e roda o filme (sem dar crédito à colaboração de Dalí), fortemente anticlerical. Uma vez exibido em 1930, cria um enorme escândalo junto da extrema-direita francesa e da burguesia parisiense.
O Cão Andaluz, 1929
Cenas de “O Cão Andaluz”, 1929
“A Idade do Ouro”, 1930
Cenas de “A Idade do Ouro”, 1930
Nesses dois filmes emblemáticos estavam patentes de forma concentrada e intensíssima todos os temas básicos que a sua obra posterior continuaria a refletir: o amor louco, o anticlericalismo, a rebeldia e inconformismo diante do estabelecido e do convencional, uma ânsia de transcendência, expressos em imagens oníricas e alucinantes, cheias de dureza, de corrosivo humor negro e de uma candura embriagante.
Exílio e experiência nos Estados Unidos
Nos anos 30, Buñuel é perseguido na Espanha e partiu para os Estados Unidos como observador de uma produtora americana, estabelecendo-se em Los Angeles. Em 1941, vai trabalhar como conselheiro e chefe de montagem para o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. Contudo, sua fama de comunista causa escândalo e ele perde o emprego.
Depois de uma boa experiência em Hollywood, onde se aperfeiçoou em técnicas de cinema e no sistema de estúdios cinematográficos, Buñuel parte para o México, onde seu cinema decola.
O presente artigo vai comentar o cinema de Buñuel no México, na Espanha e na França.
O cinema de Buñuel no México
No México, Buñuel consegue desenvolver seus interesses mais profundos. Em 1950, ele recupera a sua autenticidade e lança Os Esquecidos, sobre a vida violenta e dura dos meninos de rua na Cidade do México. Com uma influência do neorrealismo italiano na temática social, Buñuel radicaliza esse discurso em um tom mordaz, onde reintroduz elementos surrealistas, sendo muito aplaudido pela crítica.
No filme Él (1952), Buñuel lida com muitos temas comuns ao seu cinema sempre com toques de surrealismo, incluindo um romance louco entre uma mulher e seu marido burguês obsessivamente superprotetor. Apesar de sua aparência socialmente correta e justa ele se desmorona a portas fechadas. Se transforma num señorito paranoico e louco de ciúmes.
Em 1955, Buñuel realizou Ensaio de Um Crime. No enredo, o rico Archibaldo (Ernesto Alonso) é um assassino em série em potencial. Isso pode ser resultado de um incidente de infância: sua governanta o pegou experimentando algumas roupas de sua mãe e o repreendeu. Ele desejou que a governanta morresse, e ela foi imediatamente morta por uma bala perdida de uma revolução furiosa fora da janela. Confundindo morte violenta com desejo sexual, o filme é uma abordagem sobre assassinatos íntimos e frustrados.
Em seu filme Nazarin, rodado em 1958, Buñuel aborda religião e nos faz acompanhar um padre católico em sua jornada de desafios e onde ele se encontra no meio entre o seu ascetismo, despojamento e caridade e um mundo sujo em que se envolve com uma suicida e uma prostituta e assassina, suas devotas seguidoras. Diante de uma sociedade preconceituosa e de uma Igreja severa, o padre peregrina no seu dia a dia tentando se manter íntegro à mensagem de Jesus Cristo.
Em O Anjo Exterminador, de 1962, Buñuel detona a burguesia e insere elementos anticlericais. Neste filme, Buñuel despe a sociedade aristocrata, em que ricos se vêem presos numa mansão após um jantar formal. Não há nada físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e grades imaginárias. Com o decorrer dos dias, as convenções sociais vão caindo, as barreiras imaginárias permanecem, e as máscaras desprendem-se de cada personagem, aflorando os mais negativos instintos. A crítica à Igreja, como sempre em Buñuel, está presente em diversos momentos, como com os cordeiros que passeiam pela mansão e são devorados pelas pessoas presas.
Os Esquecidos, 1950
Cenas de “Os Esquecidos”, 1950
El, 1953
Cenas de “El”, 1953
Ensaio de Um Crime”, 1955
Cenas de “Ensaio de Um Crime”, 1955
Nazarin, 1958
Cenas de “Nazarin”, 1958
O Anjo Exterminador, 1962
Cenas de “O Anjo Exterminador”, 1962
O cinema de Buñuel na Espanha
Em 1960, Buñuel regressou à Espanha, onde foi perseguido em muitos anos anteriores, e filma Viridiana. O filme, cuja rodagem o governo do Ditador Franco aceitou ingenuamente subsidiar e promover no Festival de Cannes, sem que algum dos responsáveis o tivesse visionado, acabou por se revelar uma paródia impiedosa dos conceitos habituais de caridade e virtude cristãs e do reacionarismo político espanhol. Lançado em 1961, o filme ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e depressa causou um enorme escândalo na Espanha, onde foi proibido.
Em 1970 Buñuel voltou à Espanha e à sua amada Toledo para filmar Tristana, segundo um romance de Benito Pérez Galdós, em que um velho señorito (Fernando Rey) com fumaças de anticlerical e livre-pensador, seduz a sua ingénua pupila (Catherine Deneuve), vindo mais tarde a cair nas mãos dela, que não deixa de se vingar.
Viridiana, 1961
Cenas de “Viridiana”, 1961
Tristana, 1970
Cenas de “Tristana”, 1970
O cinema de Buñuel na França
Buñuel teve sucesso internacional e resolveu só filmar na França. Ao contrário dos seus produtores mexicanos e espanhóis, na França ele teve total liberdade de ação. Conseguiu também a preciosa colaboração do roteirista Jean-Claude Carrière, co-autor de todos os filmes que rodaria na França.
Em 1964, foi produzida a sua adaptação do romance de Octave Mirbeau, Diário de Uma Camareira, onde Buñuel transporta para a década de 1930 a atmosfera decadente da história, em que uma criada de quarto (Jeanne Moreau) se submete aos caprichos fetichistas, mas inofensivos, do patrão velho, e resiste tenazmente ao assédio sexual do exasperado patrão novo (Michel Piccoli), acabando por se casar com um criado pedófilo, assassino e reacionário. Como sempre, um filme polêmico.
Segue-se Belle de Jour (1967; A bela da tarde), segundo uma história de Joseph Kessel, em que uma jovem burguesa (Catherine Deneuve), muito frígida com o marido, se prostitui desavergonhadamente numa discreta casa de programa, dando rédea solta às suas fantasias masoquistas. Mais um filme pancada contra o status quo.
Em 1969, Buñuel filma A Via Láctea, também chamado de O Estranho Caminho de São Tiago, relato da peregrinação de dois vagabundos franceses a Santiago de Compostela, na Espanha, onde Buñuel evoca a sua paixão pelo romance espanhol e reflete ironicamente sobre o cristianismo e as suas heresias históricas, numa visão cínica modernista. Um filme muito polêmico e o cineasta Buñuel zomba de maneira “divertida” das crenças cristãs.
Diário de Uma Camareira, 1964
Cenas de “Diário de Uma Camareira”, 1964
A Bela da Tarde, 1967
Cenas de “A Bela da Tarde”, 1967
A Via Láctea, 1969
Cenas de “A Via Láctea”, 1969
Nos anos 70, Buñuel radicaliza suas críticas à burguesia e também suas influências surrealistas.
Em 1972, filma O Discreto Charme da Burguesia, onde a alienação, a arrogância, a falta de escrúpulos, a desonestidade e a amoralidade da burguesia são objetos do seu humor negro. Buñuel introduz no filme pequenos apontamentos e historietas de carácter saborosamente surrealista e onírico. O filme ganharia o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Em 1974, Buñuel filma O Fantasma da Liberdade, um conjunto de historietas e episódios puramente surrealistas, que se vão sucedendo à maneira de um sonho. Aqui, Buñuel atinge o ápice do seu cinema crítico, cínico, irônico e mordaz, em um momento moderno e absolutamente despojado.
O Discreto Charme da Burguesia, 1972
Cenas de “O Discreto Charme da Burguesia”, 1972
O Fantasma da Liberdade, 1974
Cenas de “O Fantasma da Liberdade”, 1974
O legado para o cinema
O cinema de Luís Buñuel foi marcado pelo radicalismo nas temáticas e pelo estilo surrealista na linguagem. Foi um cineasta rigoroso, um construtor de filmes com roteiros muito bem elaborados. A técnica cinematográfica de Buñuel foi fortemente influenciada pela mise-en-scène, edição de som e uso da música. O estilo de filmar de Buñuel era extremamente econômico. Seus filmes eram feitos em pouco tempo, raramente se desviando de seu roteiro e filmando o máximo possível para minimizar o tempo de edição. Ou seja, com poucos cortes.
As influências em seu cinema incluem uma relação histórica com o surrealismo e uma abordagem crítica ao ateísmo e à religião, além de uma crítica mordaz ao comportamento e aos ideais reacionários da burguesia. Buñuel parecia sempre estar no meio de uma revolução social e de um moralismo exacerbado, ao mesmo tempo em que abordava religião e classe alta de uma maneira cínica e destruidora. Ainda que definisse o mundo como interesseiro e hipócrita, ele possuía uma veia profunda de diversão pela vida.
Por ser um Diretor de cinema famoso pela precisão, eficiência e planejamento prévio, para quem rodar um filme sempre foi um anticlímax, pois cada membro da equipe saberia, nas palavras de Buñuel, “exatamente como cada cena será filmada e qual será a montagem final”. Assim, ele foi o único diretor de cinema (talvez juntamente com o britânico Alfred Hitchcock) que nunca jogou fora uma cena. Ele tinha o filme em mente. Quando ele dizia ‘ação’ e ‘cortar’, sabia exatamente o resultado do que queria alcançar.
O cineasta Luís Buñuel filmando
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