O cinema de Michelangelo Antonioni: Mal-estar existencial, alienação e crises de sentimentos
Breve retrospectiva, influências e início no cinema
Michelangelo Antonioni nasceu em 1912 numa próspera família de proprietários de terras em Ferrara, Emilia Romagna, no norte da Itália. Teve uma infância feliz. Após se formar em economia pela Universidade de Bolonha, ele começou a escrever para o jornal local de Ferrara, Il Corriere Padano, em 1935, como jornalista de cinema. Sempre foi influenciado pelas artes plásticas, herança que levou para o cinema como um exímio poeta de imagens, trabalhando muito com a densidade visual de paisagens exteriores e a psicologia de paisagens interiores, humanas.
Em 1940, Antonioni mudou-se para Roma, onde trabalhou para a revista Cinema, uma badalada publicação, mas editada pelo fascista Vittorio Mussolini . Em seguida, matriculou-se no Centro Sperimentale di Cinematografia para estudar técnica cinematográfica. Convocado pelo exército durante a guerra, Antonioni escapou da morte como membro da resistência italiana. Então, se voltou definitivamente para o cinema com uma estética profundamente visual, social e psicológica.
Em 1942, Antonioni co-escreveu o filme “Um Piloto Retorna” do mestre neorrealista Roberto Rossellini e trabalhou como assistente de direção em I due Foscari de Enrico Fulchignoni. Em 1943, ele viajou para a França para colaborar na direção com Marcel Carné em “Os Visitantes da Noite” e então iniciou uma série de curtas-metragens como “Gente do Pó”, um dos precursores do movimento do neorrealismo italiano. O filme foi produzido em 1943, mas, devido à guerra, somente foi recuperado e editado em 1947. O filme é um retrato semidocumental da vida de pessoas comuns, uma história de pescadores pobres do vale do Pó, no norte da Itália.
O diretor italiano Michelangelo Antonioni em duas épocas
Em busca do estilo próprio, definindo temáticas e narrativas
Após ter sido um dos precursores do neorrealismo italiano, que foi profundamente humanista e social, e de ter formação marxista oriunda da escola de Economia, Antonioni foi buscar seu caminho cinematográfico pessoal nos anos 50. Aliás, personalíssimo, único, expressando um existencialismo sem fim e buscando uma utopia de sociedade com imagens apuradíssimas e sentimentos complexos. Em outras palavras, nos anos 50, Antonioni começa a pavimentar o cinema moderno, com seus desequilíbrios emocionais, insatisfações, escapes, vazios interiores e personagens em uma busca inglória por preencher suas vidas.
Já no seu primeiro longa-metragem Cronaca di un amore (no Brasil “Crimes da Alma”), Antonioni se afasta do movimento neorrealista ao retratar as classes médias e a vida burguesa, abordando infidelidade e trama de assassinato. Ele continuou moldando seu estilo em uma série de outros filmes: “Os Vencidos”, 1952, um trio de histórias, cada uma ambientada em um país diferente (França, Itália e Inglaterra), sobre a delinquência juvenil; “A Dama sem Camélias”, sobre uma jovem estrela de cinema e sua queda em desgraça; e “As Amigas”, 1955, sobre um grupo de mulheres ricas e cultas na cidade de Torino que se envolvem em tensões e relações amorosas. Cada uma das histórias desse período se foca na alienação social dos indivíduos, muitas vezes ricos.
Filmes de Michelangelo Antonioni nos anos 50 que pavimentam suas preocupações com a classe média, os ricos, a vida burguesa e os desequilíbrios emocionais. Pela ordem: “Crimes da Alma”, “Os Vencidos”, “As Amigas” e “A Dama sem Camélias”
Cenas de “Crimes da Alma”, 1950
Cenas de “As Amigas”, 1955
Curiosamente, Antonioni rodou “O Grito”, em 1957, e retornou às histórias da classe trabalhadora, retratando um operário e sua filha numa jornada sem rumo, entre a dor e o vazio após um rompimento amoroso. Sua formação neorrealista veio novamente à tona. Sobre esse filme, Antonioni declarou ser ele “o neorrealismo sem a bicicleta” (numa alusão ao filme de Vittorio de Sica, marco daquele movimento cinematográfico). O filme “O Grito” já pontua muito bem o seu cinema com longos planos, poucos cortes, onde as imagens se prolongam em tempos mortos e as cenas ou situações parecem não ter fim ou explicação.
Dois filmes de influência neorrealista: “Gente do Pó”, 1947 e “O Grito”, 1957
Cenas de “O Grito”, 1957
Construindo o cinema moderno: Linguagem inovadora e estética profunda
O cinema autoral de Antonioni se estabelece de maneira única e madura a partir de 1960. Nessa década, Antonioni se tornou um artista completo, com uma produção cinematográfica arrebatadora. Vamos abordar inicialmente a primeira metade dos anos 60 onde ele realizou quatro filmes inovadores e surpreendentes e o tornou um cineasta de renome internacional, vencedor de prêmios nos principais festivais de cinema do mundo, passando a ser analisado em círculos especializados e adorado pela crítica. E ainda redefinindo o chamado cinema de arte.
Em 1960, Antonioni assombrou o mundo do cinema ao lançar o filme “A Aventura” no Festival de Cannes, França. Entre poucos aplausos e muitas vaias, Antonioni e seu novo filme pareciam fadados ao fracasso. Graças a um movimento de artistas, liderado pelo diretor Roberto Rossellini, “A Aventura” conseguiu ser encarado como um fenômeno portador de uma nova linguagem cinematográfica e acabou premiado com o Grande Prêmio do Júri nesse festival.
“A Aventura” narra uma viagem pelo mediterrâneo, com personagens burgueses, a uma ilha na Sicília. Anna (Lea Massari) desaparece de repente. Inicialmente, há uma busca para desvendar o mistério, mas depois o filme esquece o ocorrido e foca no relacionamento amoroso entre Sandro (Gabriele Ferzetti), namorado da vítima, e Claudia (Monica Vitti), a melhor amiga.
O filme subverteu as estruturas narrativas da época, desconsiderando a história principal e criando um outro enredo. O que vale no filme é a composição visual e as relações entre os personagens e situações complexas, totalmente soltas do casal romântico. O filme é um primor de imagens e de enigmas sobre os sentimentos humanos.
“A Aventura”, 1960, um filme onde as imagens tem o poder de arrebatar o exterior das coisas e tornar complexo o interior das pessoas, enigmático e revolucionário
Cenas de “A Aventura”, 1960
Com um ímpeto criativo incessante, Antonioni rodou em 1961 o filme “A Noite”, vencedor do Urso de Ouro no Festival Internacional de Berlim. Os temas da alienação, solidão e incomunicabilidade entre as pessoas na sociedade moderna permeiam todo o filme.
Com uma técnica apuradíssima, elegante, desconcertante, Antonioni aborda um casal: um escritor, Giovani (Marcelo Mastroiani), e uma dona de casa, Lídia (Jeanne Moreau), em profunda crise de relacionamento que, diante da morte iminente de um amigo, estão sem rumo e participam de uma festa burguesa, onde se envolvem em situações psicológicas tensas e silenciosas, e se deparam com uma outra mulher, Valentina (Monica Vitti), uma rica desencontrada, fútil, enigmática, que se entrelaça de maneira estranha com o perdido escritor. No fim da festa, tudo continua onde começou: crise.
Continuando seu frenesi artístico, Antonioni lançou em 1962 o filme “Eclipse”. Juntamente com “A Aventura” e “A Noite” esse filme compõe a chamada trilogia da incomunicabilidade, um rótulo que o próprio Antonioni desaprovava.
“O Eclipse” narra a história de uma jovem, Vittoria (Monica Vitti), que acaba de pôr fim a uma história de amor com um homem mais velho (Francisco Rabal). Depois de conhecer Piero (Alain Delon), um investidor na bolsa de valores, os dois começam a se ver e a passear pelos subúrbios vazios e modernos de Roma.
Porém, o caso é permeado de angústias existenciais, frivolidade e insanidade. Antonioni expõe as impossibilidades de um verdadeiro amor, onde um casal, apesar de procurarem ficar juntos, parecem que estão sempre distantes, emocionalmente volúveis e incapazes. Nesse filme, existe um dos finais mais incríveis do cinema: Ao marcarem um encontro, o casal não comparece e Antonioni fecha o filme com imagens de ruas, concretos e natureza, mudas e imutáveis.
“A Noite”, 1961, os sentimentos sem rumo numa teia de encontros e desencontros
Cenas de “A Noite”, 1961
“O Eclipse”, 1962, frivolidade e insanidade emocional de um casal incapaz de amar
Cenas de “O Eclipse”, 1962
Um novo filme estonteante chamado “O Deserto Vermelho” foi realizado por Antonioni em 1964 e vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza. Trata-se do seu primeiro filme colorido. Quanto a isso, Antonioni se aproveitou das cores de maneira literal, pintando cenas e estabelecendo tonalidades fortes de acordo com cada situação. Nessa obra, o diretor italiano se aprofunda cada vez mais na introspecção e cria espaços exteriores de amplitude e diálogos interiores vazios.
A história se passa numa cidade industrial no interior da Itália, com visual cinzento, cenários gigantescos de máquinas e edificações que se contrapõem à pequenez humana e suas crises existenciais. Giuliana (Monica Vitti) é esposa de um industrial chamado Ugo (Carlo Chionetti), que, após um acidente, se encontra em permanente estado de desequilíbrio e agonia. Ao se relacionar com Corrado (Richard Harris), um engenheiro do local, se envolve em seduções e delírios. Nesse filme, Antonioni faz também uma dura crítica ao capitalismo industrial e seu rolo compressor de exploração dos trabalhadores, criando imagens externas intimidadoras.
“O Deserto Vermelho”, 1964, agonia interior num vasto espaço exterior
Cenas de “O Deserto Vermelho”, 1964
Antonioni se aprofunda fora da Itália com filmes impactantes
Na segunda metade da década de 60, Antonioni embarca numa viagem para Inglaterra, Estados Unidos e Espanha e realiza três filmes tecnicamente impecáveis, com temáticas diferenciadas, buscando expor a insatisfação humana, crises emocionais e a busca utópica de compreensão do mundo moderno. Antonioni radicaliza seu discurso estético-político e se mantém em narrativas não convencionais, aumentando os enigmas, e transitando entre o real e o imaginário.
O primeiro deles é “Blow Up”, de 1966, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. É provavelmente a maior obra-prima de Antonioni, adorado pelos críticos e o filme mais popular do cineasta. O filme gira em torno de um fotógrafo de moda londrino, prepotente e manipulador, chamado Thomas (David Hemmings), que, ao fotografar um casal num parque, testemunha acidentalmente o que seria um assassinato. Passa então a ser perseguido pela mulher da foto (Vanessa Redgrave). Obcecado pelo caso, realiza seguidas ampliações, mas não pode fazer nada, pois nem existe mais corpo no local.
“Blow Up” é baseado em um conto de Júlio Cortazar e critica modismos, simbólicos e passageiros, discute a retratação da realidade através das imagens, navega pelo swing London e transita entre o real e o imaginário. Quatro cenas do filme são emblemáticas: A primeira é um ensaio fotográfico, um tanto quanto futurista, fútil e erótico; a segunda são as ampliações granuladas das fotos do assassinato que se tornam uma obsessão do personagem principal; a terceira é um show de rock, onde o guitarrista quebra os equipamentos, e a quarta é um jogo de tênis sem bola realizado por uma trupe de artistas pintados.
“Blow Up”, 1966, a impermanência das coisas, impossibilidades, o real e o imaginário
Cenas de “Blow Up”, 1966
Em 1970, Antonioni filma nos Estados Unidos o polêmico “Zabriskie Point”. Antonioni radicaliza seu posicionamento político e ataca o capitalismo e sua sociedade de consumo, além de abordar a contracultura e o movimento estudantil. A história é centrada em um jovem casal: uma secretária idealista (Daria Halprin) e um militante radical (Mark Frechette) que passa uma mensagem “anti-establishment“.
O nome do filme refere-se ao marco natural no Vale da Morte, na Califórnia, EUA. Antonioni volta a enfatizar as cores e nos fornece uma cena erótica de casais, lindamente coreografada, num deserto americano. O final do filme é espetacular: a secretária de uma empresa multinacional simula em sua mente a explosão do local de uma reunião empresarial e o que vemos são cenas em câmera lenta de produtos variados da sociedade de consumo sendo triturados.
“Zabriskie Point”, 1970, um poderoso libelo anticapitalista, tratando de militância, establishment e contracultura
Cenas de “Zabriskie Point”, 1970
Em 1975, Antonioni filma na Espanha “O Passageiro: Profissão Repórter”, onde aborda a insatisfação, a infelicidade, ao mesmo tempo em que discute guerrilhas africanas e tráfico de armas. O enredo conta a história de David (Jack Nicholson), absolutamente deprimido com sua vida de jornalista numa região desértica da África, que troca de identidade com um homem morto no hotel. Passa, então, a cumprir a agenda de trabalho dessa pessoa desconhecida.
Ao conhecer uma bela estudante (Maria Schneider), que se torna sua comparsa, David segue uma trilha perigosa quando descobre que sua nova atividade é de um traficante de armas. Antonioni, mais uma vez, nos brinda com uma cena final extraordinária: Enquanto David, já procurado pela polícia, se esconde em um quarto de hotel, a câmera vai em direção à janela, sai do local, observa a vida em volta, dá uma volta de 360 graus, ouvimos um tiro e ela retorna para dentro do quarto. Fim. Um primor de realização cinematográfica.
“O Passageiro: Profissão Repórter”, 1975, insatisfação radical e troca de identidade
Cenas de “O Passageiro: Profissão Repórter”, 1975
Antonioni continua a inovar, sofre uma tragédia e realiza seu último longa-metragem
Em 1980, Antonioni realiza o filme “O Mistério de Oberwald”, onde trabalha com o formato de vídeo e rodado primeiramente para a televisão. Antonioni fez um filme experimental, explorando novamente as cores como filtros psicológicos e contou com o retorno de sua musa e ex-mulher Monica Vitti. Curiosamente, é um filme de época.
Conta uma história de amor louco entre uma viúva Rainha da Áustria (Monica Vitti) e um poeta anarquista (Franco Branciaroli) que tem a missão de matá-la. As intrigas da corte, os jogos políticos, e o fato deles pertencerem a classes sociais antagônicas e irreconciliáveis, conduz o caso amoroso à tragédia. O filme não foi bem recebido pela crítica e nem pelo público.
“O Mistério de Oberwald”, 1980, um filme de época sobre amor e tragédia
Cenas de “O Mistério de Oberwald”, 1980
Em 1982, o mestre italiano retorna aos seus temas prediletos em “Identificação de Uma Mulher”. Trata de abandono amoroso e criação artística baseada nas realidades sentidas. O enredo: Após ser abandonado pela esposa, um diretor de cinema (Tomas Milan) tem a ideia de fazer um filme sobre as relações amorosas femininas. Então, ele sai em busca da atriz ideal (Christine Boisson) para interpretar a protagonista do filme e, também, de sua vida.
O filme tem uma brilhante fotografia de Carlo Di Palma. Mais uma vez, Antonioni está cheio de enigma e faz um drama existencial de rara beleza. Como de costume, o final é sempre incrível: Um plano-sequência por entre o nevoeiro que cai sobre a paisagem é perfeito.
“Identificação de Uma Mulher”, 1982, a busca artística pela mulher ideal
Cenas de “Identificação de uma Mulher”, 1982
Em 1985, Antonioni sofre um derrame cerebral que deixa parte do seu corpo paralisado e quase sem fala. Incapacitado, só voltaria a filmar em 1995, quando, com a ajuda de um admirador confesso, o cineasta alemão Wim Wenders, realiza o lindo e inquietante “Além das Nuvens”. Foi um retorno em alto estilo em que constrói um mosaico de personagens e relações em quatro tramas sobre amor e desejo, unidas pela jornada sentimental de um cineasta (John Malkovich) em busca de inspiração e que observa os relacionamentos de jovens casais em viagens pela França e Itália. Um painel sobre angústias, escolhas e vazios nas relações amorosas.
“Além das Nuvens”, 1995, um cineasta à procura de inspiração dentro de um mosaico de relações complexas
Cenas de “Além das Nuvens”, 1995
Legado para o cinema
O legado de Michelangelo Antonioni para o cinema é enorme. Foi inovador na linguagem, potencializou o impacto das imagens com muito apuro técnico, como se fora um artista plástico. Fabricava imagens exteriores que abrilhantavam o que se via, muitas vezes nos deixando fixos e atônitos, ao mesmo tempo em que construía imagens interiores, densas, psicológicas, dos seres humanos em seus permanentes conflitos.
Foi um mestre do cinema moderno, com um estilo personalíssimo, que nos mantém atentos para o que está por vir, mas que de repente não acontece nada, a não ser dentro de cada um, o espectador. Planos longos, tempos mortos, inquietação, cenas que não acabam ou que não se explicam, personagens enigmáticos, a busca por relações humanas satisfatórias que se tornam inalcançáveis, a crítica à burguesia e sua vida inútil, a alienação social, os ditames morais que perturbam o bem-estar interno.
Um cinema elegante e ao mesmo tempo desesperador, retratando a crise sentimental da sociedade moderna e sua busca por um lugar de preenchimento emocional. Antonioni não dava respostas. Cada um deve tentar seu caminho para ser feliz, num manto de possibilidades frágeis.
Michelangelo Antonioni filmando suas obras primas
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