“Cidadão Kane”: Obra inovadora, virtuosismo técnico e um enredo bombástico
Filme: Cidadão Kane, 1941
Direção: Orson Welles
Elenco: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Ruth Warrick, William Alland
O filme “Cidadão Kane”, dirigido em 1941 pelo enfant-terrible Orson Welles, então com apenas 24 anos, é até hoje um ícone do cinema mundial, considerado por muitos como o maior filme de todos os tempos. Orson Welles, então um iniciante, quando estava na pré-produção da obra declarou que para aprender a fazer um filme e realizar tecnicamente tudo aquilo que estava em sua mente, assistiu dezenas de vezes ao clássico “No Tempo das Diligências” de John Ford, de 1939. Estava tudo ali.
Orson Welles tinha experiência no teatro com a companhia Mercury Theatre. Encenou muitas peças teatrais baseadas em William Shakespeare que, aliás, ele as adaptaria também no cinema. Mas sua estrela brilhou foi nas transmissões radiofônicas da época. Em uma delas, em particular, em 1938, ele dramatizou uma invasão de alienígenas na terra causando pânico em multidões de ouvintes, que achavam que a referida invasão marciana estava realmente acontecendo. Na verdade, Welles fez uma adaptação da obra literária de H.G. Wells “A Guerra dos Mundos”, uma ficção-científica do final do século XIX.
A partir daí, sua reputação cresceu a tal ponto que a RKO Pictures, uma empresa de produção e distribuição de filmes americana, o convidou para realizar um filme, lhe dando “carta branca”, ou seja, domínio total da produção, coisa muita rara na indústria do cinema. Sem experiência, ao entrar num estúdio de cinema ele brincou: “Isso é o maior trem elétrico que uma criança já teve”.
Welles se agarrou a John Ford, para aprender. E aprendeu muito. Contratando um grande roteirista de Hollywood, Herman J. Mankiewicz, Orson Welles “se jogou” em experimentalismos técnicos e criou vários tipos de narrativa numa mesma história, que impactou a todo o mundo.
Orson Welles no rádio e com o roteirista Herman Mankiewicz, apelidado de Mank
O mundo a seus pés: Vida e solidão de Kane, um magnata da imprensa
O roteirista Herman Mankiewicz, o Mank, para criar o personagem do cidadão Kane, se baseou na vida do magnata da imprensa e político americano William Randolpf Heast. Mank o conhecia pessoalmente, uma vez que o magnata trafegava no cinema de Hollywood. Segundo fontes, o magnata Heast tinha uma amizade com Louis B. Mayer, o todo poderoso chefão da produtora Metro Goldwin Mayer (MGM).
Mank era socialista e revirou a vida do capitalista Heast, claro que numa linguagem ficcional. No filme, o nome do magnata é Charles Foster Kane, vitorioso nos negócios, sedento e insatisfeito na política e fracassado no amor. O filme vai fundo na interioridade do personagem, na sua solidão, na sua psique, retratando seu apogeu e sua queda.
Vamos ao filme. Tudo começa com a morte do personagem principal, Kane, em seu castelo meio que de Drácula, soturno e quase impenetrável. Seu último suspiro é: Rosebud. O que isso significa? É a pergunta chave do filme e de onde tudo vai se desenrolar. Aqui já temos uma novidade na narrativa do filme: Começa pelo fim
A partir daí, uma história de detetive se desenvolve, ligando várias narrativas diferentes do filme. Essas narrativas trafegam entre o terror, a crônica social, o documentário biográfico (um filme dentro de outro filme), uma farsa de bastidores e um melodrama sombrio. Um repórter investigativo vai fundo na vida de Kane, quando então sua infância pobre é revelada, trazendo informações de suas alegrias e de suas carências afetivas do passado
No início, parece um filme de terror e o último suspiro de Kane
O filme vai e volta entre passado e presente, o que é outra novidade da narrativa. O uso intenso de flashbacks, saltos temporais, é o instrumento técnico da investigação. O filme também quebra paradigmas de uso de focos e de lentes experimentais, e a força que dirigiu essa quebra de paradigma foi o uso constante do “foco profundo” ou, mais tecnicamente, da profundidade de campo total, técnica que permite que tanto o primeiro, quanto o segundo e terceiro (e outros) planos mantenham-se perfeitamente em foco o tempo inteiro.
Outras técnicas também são exploradas, com resultados que expressam os dilemas psicológicos dos personagens no enredo. Duas técnicas são importantes: o plongée, enquadramento da câmera de cima para baixo, como se a câmera estivesse mergulhando, e contra-plongée, justamente o oposto, ou seja, um enquadramento da câmera onde vemos a cena de baixo para cima, como se a câmera estivesse deitada e apontada para cima. Além disso, o filme conta também com recursos do filme noir no que se refere a jogos de sombras, personagens emocionalmente afetados e ambientes fechados e escuros.
Kane é ambicioso, perspicaz, perigoso nos negócios de mídia, quase um predador. O seu sucesso profissional e sua riqueza o levam a se tornar um viciado pelo poder. O filme mostra sua ascensão e sua queda ao poder. Seu controle sobre o fluxo de informações nos meios de comunicação e sua influência no que pode ou não pode ser publicado o tornam um mestre de manipulações e uma forte personalidade no meio político.
Mas sua incursão na política é muito controversa, não é bem sucedida e, para piorar, sua vida privada é marcada por amantes, dissabores e um casamento totalmente infeliz, se arrastando nas conveniências e aparências. O principal passatempo de sua esposa é jogar quebra-cabeça numa mansão fantasmagórica, de nome Xanadu. Enquanto sua amante é uma artista de cabaré.
A infância e a ascensão imperial de Kane
O mundo da política, juntamente com sua crescente solidão e seus desequilíbrios emocionais, vão se transformando em puro infortúnio. E o filme acompanha sua trajetória, do olimpo grego (em referência aos mitos da divindade) ao subterrâneo dickensiano (em referência a um ambiente de degradação marginal dos livros do escritor inglês Charles Dickens).
Além disso, vemos seu processo de envelhecimento angustiante, suas lembranças dos tempos infantis, que são o que lhe restam de bom, a farsa de bastidores da política e dos negócios de mídia e sua mórbida vida íntima, carregada de tons sombrios como seu próprio palácio residencial.
Kane na política, ascensão e farsa e os amores desequilibrados de Kane
Orson Welles foi um prodígio do início ao fim do filme. Sua atuação artística, mesclada entre a euforia dos tempos de ambição e sucesso do personagem e depressão no período de queda e degradação, física e mental, do personagem é um primor. Welles se utiliza de efeitos técnicos de luz (período de ascensão) e escuridão (período de desastre), maquiagens perfeitas de envelhecimento e de um cenário grandioso, espaçoso, mas também fechado e tenebroso, dependendo da situação psicológica.
A degradação de Kane e a solidão em espaços profundos
O filme caminha para o final e a investigação sobre o significado da palavra Rosebud, último suspiro de Kane, continua um enigma. Na cena final vemos um trenó de neve, brinquedo de infância de Kane, sendo incinerado. Kane jamais esqueceu suas lembranças de infância, se nutria disso. O que ele precisava era das alegrias desse tempo e um colo de mãe.
O trenó de infância de Kane chamado Rosebud, o enigma
Cidadão Kane foi muito ruim de bilheteria, mal conseguiu cobrir seu custo de produção. O magnata da imprensa na vida real William Randolph Hearst, modelo para o filme, tentou de todas as formas boicotar o filme e processar os realizadores. Com o tempo, o filme foi ganhando muita importância junto a especialistas, estudiosos do cinema e de todos aqueles que reconheceram o virtuosismo técnico, as proezas de inventividade que Cidadão Kane apresentou.
Quanto ao diretor Orson Welles, ele continuou fazendo filmes geniais, tais como: “Soberba”, “Macbeth”, Othelo”, “A Dama de Shangai”, “A Marca da Maldade” e “O Estranho”. Sempre manteve sua brilhante técnica e sua pegada independente, mas nunca mais conseguiu tanta energia e domínio absoluto sobre sua criação como em seu primeiro filme Cidadão Kane.
Orson Welles filmando “Cidadão Kane” e a estréia do filme em Nova York
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