Cinema Brasileiro
Neorrealismo e Cinema Novo no Brasil

Neorrealismo e Cinema Novo no Brasil

Fases históricas e uma nova página

O cinema brasileiro passou por várias fases e experiências de fazer um cinema nacional. Do cinema regionalista e genuíno de Humberto Mauro ao experimentalismo autoral de Mário Peixoto, passando pelos musicais carnavalescos com Carmen Miranda e Adhemar Gonzaga durante o período da Cinédia, depois se enveredando pelas sátiras e paródias da época das chanchadas da Atlântida com apelo de público, e pela experiência de um projeto mais industrial com a Companhia Vera Cruz, além de se escorar em figuras como Anselmo Duarte e Mazarropi. Nosso cinema até então era fundamentado em estúdios.

Nos anos 50, sob influência do engajamento humanista e social do neorrealismo italiano (Leia mais na categoria Movimentos Cinematográficos sobre o Neorrealismo italiano), o cinema brasileiro criou uma nova página em sua história, focada diretamente na vida popular, na exploração e nas mazelas sociais. Com uma nova estética cinematográfica que trabalhava a realidade brasileira e com o poder de ressonância do cinema, novos cineastas surgiram e filmes politizados foram produzidos. O discurso era não somente mostrar o povo, sua vida e seus problemas, mas também dar voz transformadora aos agentes sociais, saindo dos estúdios, filmando nas ruas e subindo morros.

Uma imagem de crianças faveladas que ganhou as telas do cinema nacional

O ideário neorrealista no Brasil e a busca de um cinema nacional-popular

O Realismo Carioca

Paralelamente ao fracasso do modelo industrial da Companhia Vera Cruz, a estética neorrealista deflagrou o início de uma produção cinematográfica no Brasil, primeiramente no Rio de Janeiro, que buscava identificação com o ideário de um cinema independente dos estúdios e voltado para uma cultura nacional autêntica, balizada na nossa tradição sociocultural, e que protagonizasse as classes populares. Surgiram quatro filmes significativos. São eles: “Agulha no Palheiro”, de 1953, dirigido por Alexy Viany, “Rio 40 Graus”, de 1955, e “Rio Zona Norte”, de 1957, ambos dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, e “O Grande Momento”, de 1958, dirigido por Roberto Santos. Essa nova produção cinematográfica também foi rotulada de “realismo carioca”.

“Agulha no Palheiro”, 1953, e o crítico de cinema e diretor Alex Viany

Alex Viany

Cenas de “Agulha no Palheiro”, 1953

Mas foi com a figura de Nelson Pereira dos Santos que se deu um novo rumo ao cinema brasileiro, onde a busca social do neorrealismo no Brasil se transformou num novo formato de cinema nacional-popular.  “Rio 40 Graus” se tornou um grande clássico e um marco de um cinema que abordava a vida da população pobre, centrado no cotidiano de favelas e ruas do Rio de Janeiro. Dialogou com o neorrealismo italiano, mas, acima de tudo, procurou um cinema de raízes nacionais, incorporando crianças de morro e outros tipos populares numa história sobre lutas diárias de sobrevivência.

Da mesma forma, e ainda mais centrado na nossa tradição cultural, o filme “Rio Zona Norte” dá protagonismo a personagens do povo e começa a disseminar cultura popular. Narra a história de um pobre aspirante a músico e cantor, expondo nossa raiz no samba e tratando de marginalidade social, com ênfase na nossa herança negra. Esses dois filmes de Nelson Pereira dos Santos abriram caminho para um cinema fora de estúdios e engajado na discussão de problemas sociais e no papel do cinema como instrumento de transformação, a partir de uma narrativa dramática fincada na realidade brasileira.   

“Rio 40 Graus”, 1955, O diretor Nelson Pereira dos Santos, e “Rio Zona Norte”, 1957, influências neorrealistas

Nelson Pereira dos Santos

Cenas de “Rio 40 Graus”, 1955, e “Rio Zona Norte”, 1957, juntas e comentadas

“O Grande Momento”, 1958, e o diretor Roberto Santos

Roberto Santos

Cenas de “O Grande Momento”, 1958

O Realismo Afro-baiano

Além do Rio de Janeiro, Salvador viveu uma efervescência muitiétnica nas artes, focada na rica e complexa cultura afro-baiana. Nomes na literatura como Jorge Amado, na música como Dorival Caymmi e João Gilberto, e nas artes plásticas como Lina Bo Bardi, foram surgindo e badalaram a cena cultural baiana.

No cinema, apareceram os filmes “Bahia de Todos os Santos’, de 1960, dirigido por Trigueirinho Neto, tratando de temas como marginalidade, política e religiosidade nas ruas de Salvador, e “A Grande Feira”, de 1961, dirigido por Roberto Pires, com personagens que formam um painel heterogêneo, com parcelas da elite e do povo. São crônicas populares de Salvador, abordando inquietações de trabalhadores sobre condições de vida e de trabalho. Ambos os filmes apresentam imagens que retratam as mazelas sociais e tradições populares da Bahia.

 “Bahia de Todos os Santos”, 1960, e o diretor Trigueirinho Neto

Trigueirinho Neto

Cenas de “Bahia de Todos os Santos”, 1960

“A Grande Feira”, 1961, e o diretor Roberto Pires

Roberto Pires

Cenas de “A Grande Feira”, 1961

O Realismo Documental

Dois documentários de curta-metragem foram muito importantes ainda na pegada neorrealista do cinema brasileiro e também considerados precursores do cinema novo. Foram realizados praticamente juntos. O primeiro é “Arraial do Cabo”, de 1959, dirigido por Paulo César Sarraceni e Mário Carneiro. O segundo é “Aruanda”, de 1960, dirigido por Linduarte Noronha.

“Arraial do Cabo” foi rodado na cidade de Cabo Frio, litoral norte do Rio de Janeiro, e trata da instalação de uma indústria química em um reduto de pescadores trazendo como conseqüência as transformações sociais e interferências nas formas tradicionais da vida local. Filmado com poucos recursos, mostrou ser possível fazer um cinema no Brasil sobre nossa realidade e nosso povo. Seu diretor, Paulo César Sarraceni, além de precursor, se juntaria ao grupo do Cinema Novo.

“Aruanda” foi rodado no interior da Paraíba e conta a história dos remanescentes de um quilombo em Serra do Talhado, mostrando o cotidiano dos moradores, jornadas de plantio e feitos de cerâmica “primitiva”. A partir de mesclas com elemento ficcional (o filme se inicia com os habitantes do quilombo representando os antepassados), o curta-metragem aborda uma realidade social e cultural ainda não retratada no cinema à época.

“Arraial do Cabo”, 1959, o diretor Paulo César Sarraceni, e “Aruanda”, 1960, precursores do cinema novo

Paulo César Sarraceni

Cenas de “Arraial do Cabo”, 1959

Cenas dse “Aruanda”, 1960

O início do Cinema Novo: Povo, utopia e revolução

Primeira experiência de Glauber com o ideário do cinema novo

Um jovem cinéfilo oriundo do Clube de Cinema da Bahia, de nome Glauber Rocha, acompanhava todos esses ingredientes nacionais e populares novos, tanto os filmes de Nelson Pereira dos Santos, no Rio, quanto os de Trigueirinho Neto e Roberto Pires, em Salvador, e os documentários sociais de Paulo César Sarraceni e Linduarte Noronha que foram considerados obras precursoras para um novo movimento cinematográfico que surgiu no Brasil nos anos 60: O Cinema Novo. Glauber se tornaria “a cara” do cinema novo, com filmes revolucionários.

Glauber Rocha se iniciou no cinema com o curta-metragem “O Pátio”, de 1959, algo muito experimental e influenciado pelo concretrismo. Mas foi com “Barravento”, de 1962, seu primeiro longa, que ele lançaria as bases do cinema novo, tratando de religiosidade, negritude, exploração e liberdade. Glauber tinha um entendimento de que era possível fazer cinema no Brasil com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, frase que se tornou um emblema do cinema novo.

“Barravento”, 1962, uma das primeiras experiências do cinema novo, e Glauber Rocha filmando

Glauber Rocha

Cenas de “Barravento”, 1962

O Centro Popular de Cultura – CPC da UNE e o Cinema Novo

No Rio de Janeiro, em 1962, alguns jovens diretores de cinema, todos iniciantes, se unem ao Centro Popular de Cultura – CPC da União Nacional dos Estudantes – UNE para produzir o filme “Cinco Vezes Favela”, um longa metragem com cinco episódios. Foi um assombro cinematográfico, um retrato pungente da realidade social brasileira, a partir das favelas do Rio. O CPC, principalmente no teatro, era um espaço de uma produção cultural nacional engajada na luta política de transformações sociais do país.

O filme subiu o morro e vivenciou as favelas e se dividiu em cinco episódios. São os seguintes: “Um Favelado”, dirigido por Marcos Farias, “Zé da Cachorra”, dirigido por Miguel Borges, “Couro de Gato”, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, “Escola de Samba, Alegria de Viver”, dirigido por Cacá Diegues, e “Pedreira de São Diogo”, dirigido por Leon Hirszman. Cacá Diegues, Joaquim Pedro e Leon Hirszman realizariam grandes filmes do cinema novo.

O episódio de Leon Hirszman era o mais relacionado ao ideário do cinema novo, o mais politizado, onde uma favela que se encontra em cima de uma pedreira corre o risco de desabamento em conseqüência de explosões de dinamites realizadas por empresas capitalistas. Os operários, então, incitam os moradores a dar início a um movimento de resistência, um ativismo político para que não ocorra um desastre, e os operários vencem o movimento.

Filme “Cinco Vezes Favela”, 1962, o primeiro grande expoente do cinema novo, e o episódio “Pedreira de São Diogo”, o mais engajado politicamente, e o diretor Leon Hirszman

Leon Hirszman

Cacá Diegues e Joaquim Pedro de Andrade, diretores de outros episódios do filme, do grupo do cinema novo. Depois fariam filmes importantes para o movimento.

Cenas de “Cinco Vezes Favela”, 1962

Episódio “Pedreira de São Diogo”, de Leo Hirszman

Episódio “Escola de Samba, Alegria de Viver” de Cacá Diegues

Episódio “Couro de Gato” de Joaquim Pedro de Andrade

A trilogia fundamental do Cinema Novo

O Brasil passava por momentos de lutas por grandes reformas sociais e econômicas durante o governo João Goulart. Havia uma efervescência política e um engajamento da produção cultural por transformações, capitaneado pelo teatro, literatura, música e cinema. Os trabalhadores estavam se engajando em movimentos reivindicatórios por liberdades, trabalho justo e contra a opressão das elites econômicas.

E foi no cinema novo que se buscou construir as imagens reais do país, imagens que fossem capazes de protagonizar a classe trabalhadora, sua diversidade cultural e suas mazelas, abandonando um cinema elitizado com temáticas alienantes e abordando as desigualdades sociais do país, a exploração do povo e a necessidade da mobilização popular para implementar as mudanças estruturais. O cinema novo pregava uma revolução cinematográfica e uma revolução social, com fortes influências das idéias socialistas.

Nos anos de 1963 e 1964, portanto anteriores ao golpe militar, o cinema novo lançou seu manifesto utópico, popular e revolucionário através de uma trilogia poderosa e surpreendente de filmes: “Vidas Secas”, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, “Os Fuzis”, dirigido por Ruy Guerra e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, dirigido por Glauber Rocha. Foram marcos do cinema novo e se tornaram clássicos do cinema brasileiro e mundial.

“Vidas Secas”, de 1963, trazia o diretor Nelson Pereira dos Santos mais radicalizado no cinema nacional-popular. O filme é uma adaptação do romance do escritor Graciliano Ramos que narra a saga de uma família de retirantes sertanejos fugindo da seca nordestina, tentando, a qualquer custo, se estabelecer em algum lugar com trabalho digno, mas sofrem com o descaso social e a opressão das elites dominantes. Filmado em locações reais no interior de Alagoas, o filme teve uma grande recepção.

Além de imagens poderosas que incluem paisagens desoladoras e silenciosas, um clima árido, o drama de uma criança, o infortúnio de um pai de família e até mesmo o abatimento de um cachorro, a trilha sonora foi uma inovação com canto de boiadeiro, barulho de carro de boi, violino e música da festa de bumba meu boi. A pobreza e a miséria são vistas sem camuflagem, de maneira nua e crua. É uma triste realidade captada pela câmera do cinema.

“Vidas Secas”, 1963, e o diretor Nelson Pereira dos Santos

Cenas de “Vidas Secas”, 1963

“Os Fuzis”, de 1964, foi dirigido pelo moçambicano radicado no Brasil, Ruy Guerra. O filme narra a atuação de um grupo de soldados que chegam a um vilarejo pobre do nordeste brasileiro para impedir que a população humilde saqueie um depósito de alimentos. Em meio a um cenário desolador de fome, os soldados, ainda que chocados com a situação da população, mantem-se na sua posição militar, eles cumprem a Lei, a “Lei do mais forte”. Não tomam partido. Mas tudo leva a um descontentamento.

Filmado na cidade de Milagres, interior da Bahia, o filme ainda faz um enfoque sobre o papel da religiosidade popular diante da fome e da seca, como a única válvula de escape. Há romarias, ladainhas e devoção a santos e também à figura mítica do boi. No andamento do filme, surge a figura de um caminhoneiro que se rebela violentamente contra esse estado de penúria e repressão. Mas, está sozinho, e será caçado. O povo continua frágil e sem ação. O filme é dramático, aborda a ação individual diante da miséria e da opressão, enquanto a religião e fanáticos tentam aliviar o povo com alguma esperança.

“Os Fuzis”, 1964, e o diretor Ruy Guerra

Cenas de “Os Fuzis”, 1964

“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964, foi a catarse artística do diretor Glauber Rocha em busca de sua estética da fome e de seu cinema libertário do terceiro mundo. Filmado em Monte Santo, Bahia, e centrado na figura do jagunço Manuel que mata o patrão e se refugia com um religioso fanático, que nos remete à epopéia de Canudos, e a seu líder Antonio Conselheiro, Glauber se rebela contra os latifúndios, contra o coronelismo político, faz uma releitura do movimento guerrilheiro do cangaço e do papel da religião na estrutura social sertaneja e também na cultura nacional.

Além disso, Glauber faz um perfil solitário e complexo de um matador de aluguel na figura, que se tornou clássica e icônica, de Antônio das Mortes. Com forte influência do cinema revolucionário do russo Serguei Eisenstein, o filme tem imagens poderosas de um Brasil real e esquecido, com pegadas de dramaturgia teatral, cortes rápidos e repetidos de cenas, que se tornariam a marca glauberiana de fazer cinema. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é um grande marco da história do cinema brasileiro.

“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964, e o diretor Glauber Rocha

Cenas de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964

Música de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964

Por fim, gostaríamos de homenagear quatro diretores de fotografia (e operadores de câmera) que foram muito relevantes nessa nova fase do cinema brasileiro. Através de seus enquadramentos e planos podemos assistir a grandes filmes neorrealistas brasileiros e do cinema novo. Abaixo, os apresentamos.

Diretores de fotografia importantes. Pela ordem: Hélio Silva, Dib Lufti, Ricardo Aranovich e Mário Carneiro

Hélio Silva
Dib Lufti
Ricardo Aranovich
Mário Carneiro

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