O “Neorrealismo italiano”: Um movimento engajado no humanismo e na temática social
O sentido e o caminho do movimento
O neorrealismo foi um movimento cinematográfico surgido nos anos 40 na Itália e que perdurou até o início dos anos 60 do século XX. Antes de qualquer análise, foi um movimento humanista, de temática social, e que empoderou gente simples e humilde nas telas do cinema.
Dentre os seus principais objetivos, ele se contrapunha à estética hollywoodiana dos estúdios, do puro entretenimento e de seus escapismos romanceados e melodramas alienados. Por outro lado, combatia a estética fascista burguesa e totalitária, essencialmente moralista e manipuladora das massas que vigorava até então. Buscou também uma visão anti-industrial do cinema com orçamentos reduzidos e locações externas, naturais.
Partindo de um contexto histórico desalentador de guerra, e suas tragédias humanas, e o pós-guerra, com seus desastres sociais, e tornando a classe trabalhadora e o cidadão comum protagonistas dos filmes, o movimento neorrealista foi inovador e profundamente enraizado nas mazelas sociais.
Foi o primeiro movimento cinematográfico a priorizar filmagens em locações reais, como ruas movimentadas e casas comuns, em trabalhar com atores não profissionais, inclusive crianças, e em apresentar e não representar a realidade com os problemas econômicos e sociais da maneira como eles atingiam a população, ou seja, cruamente. Largou o cinema de ficção e adotou um cinema quase documental, hiperrealista, baseado no cotidiano da sociedade italiana.
O núcleo inicial do movimento
O movimento neorrealista, especialmente seu estilo engajado, foi pavimentado por um grupo de críticos italianos da revista Cinema, muito badalada nos anos 40 e 50 do século XX, que incluía o roteirista Cesare Zavatini e os intelectuais Gianni Puccini, Giuseppi De Santis e Pietro Ingrao. Além de críticos de cinema, eram jornalistas e ativistas sociais. Com exceção de Pietro Ingrao, que fez carreira na política, os demais seguiram no cinema.
Na contramão dos filmes comerciais, convencionais e imitativos de Hollywood que dominavam o cinema italiano na época, esse grupo de pensadores pregava um cinema realista, com uma estrutura narrativa fincada nas ansiedades, necessidades e sofrimentos do povo comum. Enfim, defendiam fazer filmes que refletissem as realidades simples e trágicas da vida proletária usando filmagens e atores não profissionais.
A Revista italiana Cinema e o roteirista Cesare Zavatini, mentor e expoente do movimento
Giuseppi de Santis, Pietro Ingrao e Gianni Puccini, o núcleo idealizador
Principais diretores e filmes
Luchino Visconti
O Diretor Luchino Visconti, curiosamente um descendente da nobreza italiana que se converteu ao marxismo, com seu filme “Obsessão”, de 1943, lançou a primeira pá na construção desse movimento neorrealista, é um prenúncio, o filme inaugural, mas ainda sem o total engajamento político e social de outros filmes posteriores do movimento.
Adaptando o romance “The Postman Always Rings Twice” (“O Carteiro sempre toca duas vezes”), do norte-americano James Cain, o diretor conseguiu retratar um país de contrastes, com desigualdades latentes, que destoava da representação estilizada e ficcional então dominante.
Os personagens do filme apresentam contrastes: uma mulher frágil e oprimida, e um homem andarilho, instintivo e sedutor. Filmado durante a guerra, é um filme pessimista e um tanto desesperador, possui um desfecho amargo e questiona os valores morais e éticos da sociedade italiana.
Obsessão, 1943, e o diretor Luchino Visconti
Cenas de Obsessão, 1943
Visconti realizaria um filme verdadeiramente neorrealista em 1948, “A Terra Treme”. Dessa vez, com mais qualidade técnica, ele explora bem a situação social dos trabalhadores ao abordar a luta de um jovem pescador, junto com a sua família, que se revolta contra a exploração que sofre dos seus superiores no porto de Catania, na Sicília.
Outro de seus filmes que ainda teve a pegada humanista e social do neorrealismo foi “Rocco e seus Irmãos”, de 1960, onde aborda o tema da luta pela sobrevivência em uma cidade grande quando uma pobre viúva e seus cinco filhos saem de um vilarejo italiano em busca de uma vida melhor.
Visconti depois seguiu outra linha, mas continuava transformista. Daí para frente ele abordou muito a vida da aristocracia e da burguesia, com seus instrumentos de dominação e exploração, e a decadência das classes altas, desnudando principalmente seu luxo, hábitos e costumes que encobriam uma falsa moral.
Dois outros filmes neorrealistas do diretor Visconti: “A Terra Treme”, 1948, e “Rocco e seus Irmãos”, 1960
Roberto Rossellini
Outro líder do movimento, o diretor Roberto Rossellini, ainda durante a guerra — e, mais especificamente, no próprio campo de batalha — filma “Roma Cidade Aberta”, lançado em 1945, inserindo registros de combates verdadeiros junto à dramatização. Rodado clandestinamente, o filme situa-se num limiar entre encenação e documento histórico. E, ainda, peça de propaganda contra o regime fascista agonizante com seus conflitos e choques inevitáveis.
Essa obra prima do neorrealismo italiano mostrou a cidade de Roma durante os últimos dias de ocupação dos nazistas. Os seus heróis são um padre católico, um comunista membro da resistência e uma viúva que tem um filho e espera outro, representando as mulheres, o povo. São estes os heróis do filme que resistem às atrocidades dos nazistas e fascistas.
Esse brilhante filme tem inúmeras cenas marcantes, especialmente a morte do padre católico pelos nazistas, o sentimento e a falta de esperança dos garotos que transitam pelas ruas ocupadas e o desespero de uma viúva em correria, atrás de seus entes queridos.
Roma, Cidade Aberta, 1945, e o diretor Roberto Rossellini
Cenas de Roma, Cidade Aberta, 1945
Rossellini faria mais dois filmes com a temática social da segunda guerra, desnudando a Itália e a Europa, com suas cidades em ruínas e suas populações sacrificadas: “Paisá”, de 1946, e “Alemanha Ano Zero”, de 1948. Junto com “Roma”, se tornou a sua trilogia da guerra. A máxima do diretor Rossellini e de seus filmes era a seguinte: “A realidade está aí, para que manipulá-la”.
Rossellini depois realizou muitos filmes biográficos, sempre com pegada social e humanista, e também outros filmes no estilo drama com sua então esposa, a atriz Ingrid Bergman.
Dois outros filmes neorrealistas do diretor Rossellini: “Paisá”, 1946, e “Alemanha Ano Zero”, 1948
Vittorio De Sica
Mas é com o diretor Vittorio De Sica que o neorrealismo produz uma das obras mais expressivas e emblemáticas de sua estética. O filme “Ladrões de bicicleta”, de1948, contém os principais elementos do filme neorrealista: a temática dos problemas sociais, a criança, os atores iniciantes, amadores ou desconhecidos, a ambientação in loco, cenários naturais, a ausência de apelos técnicos ou dramatúrgicos e ao mesmo tempo um intenso conflito na trama.
O filme é uma obra-prima e um belíssimo retrato dos desajustes sociais da Itália do pós-guerra. O roteiro é de um expoente do movimento: Cesare Zavattini. Narrando a história do homem recém-empregado que tem seu instrumento de trabalho — a bicicleta — roubado, e assim ameaçado de perder o emprego, De Sica emoldura um quadro da classe trabalhadora urbana de então, assombrada pelo desemprego. São muitos os momentos de emoção e comoção, transmitidos pelo pai de família desesperado e seu filho pequeno e tristonho.
Ladrões de Bicicleta, 1948, e o diretor Vittorio De Sica
Cenas de Ladrões de Bicicleta, 1948
De Sica sempre foi reconhecido como o grande mestre do neorrealismo italiano e também foi um bom ator. Antes de se enveredar por comédias de costume e outros dramas sociais, inclusive históricos, ainda realizou dois grandes filmes de temática neorrealista:
“Milagre em Milão”, de 1950, uma fantasia que conta a história de um jovem miserável muito bondoso, que recebe um presente dos céus e passa a fazer muitos milagres para ajudar as pessoas, e “Umberto D”, de 1952, um comovente e delicado retrato humanista e lírico das dificuldades econômicas e sociais de uma velhice desamparada, abordando solidão, luta por dignidade, crítica social e desesperança, temas que continuam tristemente atuais.
Dois outros filmes neorrealistas do diretor De Sica: “Milagre em Milão”, 1950, e “Umberto D”, 1952
A contribuição de outros diretores italianos para o neorrealismo
Pietro Germi
O diretor Pietro Germi estudou teatro e direção de cinema em Roma no Centro Sperimentale di Cinematografia. Durante o tempo de escola, sustentava a si mesmo com trabalhos extras de ator, assistente de direção e ocasionalmente escritor/roteirista. O début como diretor ocorreu em 1946 com o filme “O Testemunho” (Il Testimone). O filme trata da história de um homem condenado á morte por roubo e homicídio e enfrenta uma sentença de pena de morte, mas um testemunho de um antigo funcionário público será crucial para o seu destino.
Apesar de ser considerado um exemplar daquilo que se convencionaria rotular de thriller policial, o filme se inclui no estilo neorrealista do cinema italiano, pois aborda os dramas sociais contemporâneos da sociedade siciliana da época.
Passado alguns anos, o diretor Pietro Germi migrou dos filmes de drama social para as comédias satíricas, mantendo o seu elemento tradicional que era a sociedade da Sicília. Nos anos 60, Pietro Germi atingiu o sucesso internacional com o filme Divórcio à Italiana, de 1961, premiado com o Oscar de melhor roteiro original em 1962, além da indicação para o prêmio Oscar de melhor diretor.
O Testemunho, 1946, e o diretor Pietro Germi
Michelangelo Antonioni
O diretor Michelangelo Antonioni, que faria uma brilhante carreira com filmes cultuados como obras de arte e muito premiados, contribuiu com o movimento neorrealista no início de sua vida no cinema. Antes de rodar seu primeiro longa-metragem, “Crônica de Amor”, em 1950, Antonioni rodou alguns curtas-metragens, em estilo documental, com pegada neorrealista.
Em 1943, Antonioni iniciou as filmagens do curta-metragem “Gente do Pó” que, devido à guerra, só foi lançado em 1947. Antonioni apresenta o cotidiano dos pescadores e moradores do vale do Rio Pó, na Itália, e a difícil situação social daquelas pessoas, suas necessidades e o afastamento completo de qualquer ordenança governamental.
O filme é um poema em imagens e Antonioni já mostrava ter um ótimo olho para composição de planos, misturando a paisagem interior do homem com a paisagem exterior que o cerca, e o público compartilha da dor e cansaço desses trabalhadores ribeirinhos.
Gente do Pó, 1947, e o diretor Michelangelo Antonioni
Cenas de Gente do Pó, 1947
O diretor Antonioni logo partiu para seu cinema profundamente intimista e emocional, abordando as necessidades, carências e desequilíbrios do mundo moderno, principalmente estudando comportamentos humanos, preferencialmente das classes média e alta, e as dificuldades de comunicação, bem como os dramas das relações disfuncionais e o dilema das mudanças sociais e psicológicas efetivas. Ao ser perguntado porque seu cinema não era mais neorrealista, ele respondeu: “E depois da bicicleta? Temos que desenvolver essa narrativa”.
A sua chamada Trilogia da Incomunicabilidade, que inclui os filmes “A Aventura”, “A Noite” e o “Eclipse”, no início dos anos 60, é um marco em sua carreira. Antonioni ainda filmaria mais três obras primas: “O Deserto Vermelho”, em 1964, “Blow Up”, em 1966, e “O Passageiro, Profissão Repórter”, em 1975.
Federico Fellini
O diretor Federico Fellini contribuiu com o movimento neorrealista nos filmes de Roberto Rossellini como roteirista, ator e assistente de direção, mas se afastou logo. Iniciou-se na direção de filmes como co-diretor em “Mulheres e Luzes”, em 1950, e diretor solo com “Abismo de um Sonho”, em 1952. Mas o filme que Fellini realizou e que muita gente o considera como estética neorrealista foi “A Estrada da Vida”, de 1954, onde venceu seu primeiro Oscar de melhor filme estrangeiro.
“A Estrada da Vida” conta a história de Gelsomina, uma pobre jovem (Giulietta Masina) comprada de sua mãe pelo Zampanò (Anthony Quinn), um homem forte e brutal que a leva para trabalhar ao lado dele em espetáculos itinerantes e depois em um circo. O filme insere-se na estética neorrealista por retratar a Itália do pós-guerra, decadente e pobre.
Outro filme de Fellini que pode também ser enquadrado no neorrealismo é “Noites de Cabíria”, de 1957, que narra a história de Cabíria (interpretada pela atriz Giulietta Masina, que era a esposa de Fellini), uma cortesã romântica e ingênua que sonha com o verdadeiro amor, mas sofre constantes desilusões amorosas. Por retratar uma mulher simples, do povo, a pegada neorrealista se manifesta.
“A Estrada da Vida”, 1954, o diretor Federico Fellini, e “Noites de Cabíria”, 1957.
Cenas de Noites de Cabiria, 1957
Fellini seguiu sua carreira com outra temática, que já forjara desde o início, um cinema que mistura memória, fantasia, sonho, estilo barroco e exageros. Realizou muitas obras primas e recebeu muitos prêmios internacionais. Seu estilo inconfundível de leveza, despojamento, insolência, caricaturas e personagens profundamente humanos recebeu o título único de felliniano.
Pier Paolo Pasolini
O diretor Pier Paolo Pasolini, também poeta e escritor, provavelmente realizou o último filme denominado de neorrealista: “Accattone, Desajuste Social”, de 1961. O filme narra a trajetória de Accattone, um cafetão da periferia pobre de Roma na década de 1960 que vive dos rendimentos ganhos pela sua prostituta Madalena.
Quando ele perde a sua fonte de rendimento e, sem ninguém para o sustentar, começa o seu declínio, chegando a passar fome. Até que conhece a bela e inocente Stella. Tenta iniciá-la na prostituição, mas se apaixona e decide arranjar uma forma de a sustentar com trágicas conseqüências.
Accattone, 1961, e o diretor Pier Paolo Pasolini
Pasolini não era um diretor que se pudesse rotular ou enquadrar. Sabidamente marxista, transitou por muitas narrativas diferenciadas, desde a vida de Jesus Cristo com “O Evangelho Segundo São Mateus”, de 1964, histórias populares em “Gaviões e Passarinhos”, de 1966, críticas brutais contra a burguesia em “Teorema”, de 1968, passando por mitos gregos como “Medéia”, de 1969.
Ele assombrou todo mundo e se notabilizou internacionalmente com a trilogia de contos seculares, populares e orientais em “Decameron”, 1971, “Os Contos de Canterbury”, 1972, e “As Mil e Uma Noites”, 1974.
As influências do neorrealismo pelo mundo
O movimento neorrealista, com seu engajamento social, influenciou diretores e filmes de vários países. Vamos assinalar apenas alguns exemplos importantes.
No Japão, o neorrealismo afetou a produção cinematográfica do mestre Akira Kurosawa que bebeu de sua fonte no filme “Ralé”, de 1957. Ainda que seja um filme de natureza teatral baseado na peça de Máximo Gorki, “Ralé” é repleto de marginalizados, gente pobre, escória social, tipos que Kurosawa vai se identificando com muita empatia ao longo da narrativa. Nesse sentido, o filme passa pela temática neorrealista de gente simples e comum, deserdados da sociedade.
No Japão: Ralé, 1957, de Akira Kurosawa
No Brasil, o neorrealismo teve influência direta na primeira fase da carreira do diretor Nelson Pereira dos Santos, especialmente no seu filme clássico “Rio 40 Graus”, de 1955.
O filme é um semidocumentário sobre tipos populares do Rio de Janeiro e acompanha um dia na vida de cinco garotos de uma favela que, num domingo tipicamente carioca e de sol escaldante, vendem amendoim em lugares típicos da cidade, como Copacabana, Pão de Açúcar e Maracanã.
“Rio 40 Graus” é profundamente humanista e tipicamente neorrealista, um manifesto sobre os problemas sociais brasileiros, centrado na marginalidade carioca.
No Brasil: Rio 40 Graus, 1955, de Nelson Pereira dos Santos
No México, o neorrealismo influenciou um dos grandes nomes do cinema mundial, Luís Bunuel, precisamente no seu filme “Os Esquecidos”, 1950. “Os Esquecidos” é a primeira obra da fase mexicana do diretor espanhol. Foi rodado no subúrbio da Cidade do México.
O filme retrata o cotidiano de um grupo de jovens delinquentes, entre eles Jaibo, recém fugido do reformatório, e Pedro, um garoto rejeitado pela mãe que acaba se envolvendo em um assassinato. O tema da delinqüência juvenil abordado no filme também é resultante dos desajustes sociais de um país. Portanto, nos remete ao objetivo maior do neorrealismo de tratar as mazelas sociais.
No México: Os Esquecidos, 1950, de Luís Bunuel
Por fim, na França, o neorrealismo abriu as portas para o um novo tipo de cinema, o movimento da “Nouvelle Vague”, que preconizava, não exatamente os embates sociais, mas as mesmas maneiras de fazer filmes, ou seja, com poucos recursos, com câmera na mão e com locações naturais, ruas e casas.
O filme “Os Incompreendidos”, de 1959, dirigido por François Truffaut guarda sinais da temática social do neorrealismo, só que nesse caso, retrata os problemas familiares e, por consequência, as disfuncionalidades e rebeldias de um jovem francês.
Na França: Os Incompreendidos, 1959, de François Truffaut
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