Grandes Diretores
O cinema de John Ford: Heróis, lutas, mitos e lendas num realismo selvagem

O cinema de John Ford: Heróis, lutas, mitos e lendas num realismo selvagem

Breve perfil

John Ford foi um cineasta dos Estados Unidos de grande renome. Venceu quatro Oscars de melhor diretor, detendo o recorde na categoria, e é considerado um dos maiores diretores de todos os tempos. É conhecido, principalmente, mas não só, pelos seus faroestes. Alguns dos seus filmes são presenças assíduas entre as escolhas dos cinéfilos de todo o mundo. Em cerca de cinco décadas de carreira, Ford dirigiu dezenas de filmes. Nasceu em 1894 e faleceu de câncer, ao lado da esposa de sua vida inteira, Mary McBride Ford, em 1973.

John Ford era descendente de irlandeses da cidade de Galway. Passou a juventude em Portland, EUA, e trabalhava conduzindo uma carroça de peixe, e posteriormente foi entregador e publicista de uma fábrica de calçados. À noite, trabalhava como lanterninha do Teatro Jefferson e no Ponto da Jóia, apaixonando-se, assim, pelo teatro.

John Ford partiu para a Califórnia. Iniciou-se como ator, assistente faz-tudo e dublê a partir de 1914, por intermédio de seu irmão, o ator-diretor Francis Ford. Inicialmente sob o nome Jack Ford, nome que conservou, atuando e dirigindo, até 1923, quando assumiu definitivamente o nome artístico John Ford. Nos anos 20, rodou muitos filmes de curta duração, desenvolvendo sua técnica, suas narrativas e se estabeleceu como o mais novo talento do cinema americano. E esse talento não cessou.

O cineasta John Ford em duas épocas

Características do seu cinema e primeiros sucessos

O cinema de John Ford era muito caracterizado pelo pouco movimento de câmera, com planos fixos e longos, sua câmera se mantinha distante da ação, como se fora uma espectadora. Ford não se dava ao experimentalismo, optando por uma narrativa clássica que buscava a formatação do herói americano em um processo histórico. Ford dirigia como se estivesse analisando seus personagens e, exatamente por isso, eles carregavam uma forte carga de sentimentos, de emoções e de significados, mesmo os de pequenos papéis.

Uma característica notável dos filmes de John Ford é que ele usou uma “sociedade por ações” de atores, muito mais do que muitos diretores. Muitas estrelas famosas apareceram em vários de seus filmes, incluindo Harry Carey, Will Rogers, John Wayne, Henry Fonda, Maureen O’Hara, James Stewart, Woody Strode, Richard Widmark, Victor McLaglen, Vera Miles e Jeffrey Hunter. 

O mais incrível é que John Ford também dava muita importância aos seus atores coadjuvantes que brilhavam em vários de seus filmes: Ben Johnson, Andy Devine, Ward Bond, Mae Marsh, Harry Carey Jr., Ken Curtis, Frank Baker, Dolores del Río, Pedro Armendáriz, Hank Worden, John Qualen, Barry Fitzgerald, Arthur Shields, John Carradine, OZ Whitehead e Carleton Young. 

Foi a partir de 1924, com The Iron Horse (“O Cavalo de Ferro”), um relato épico sobre a construção da primeira ferrovia transcontinental nos Estados Unidos, que John Ford começou a ficar conhecido, começando a tratar de índios e mocinhos. John Ford confirmou sua posição no topo dos diretores americanos com o drama do Exército Republicano Irlandês e influenciado pelo cineasta do expressionismo alemão Friedrich Murnau, The Informer (O Delator, 1935). Estrelado por Victor McLaglen, Ford recebeu muitos elogios e venceu seu primeiro Oscar de melhor Diretor.

O Cavalo de Ferro, 1924

Cenas de “O Cavalo de Ferro”, 1924

O Delator, 1935

Cenas de “O Delator”, 1935

A formatação da América

John Ford foi um importante artista para a formatação da América, do ser americano, através do cinema. Seus filmes trataram da colonização do Oeste e seus conflitos humanos e sociais, do processo espinhoso da modernidade, de mitos e lendas que perpassaram a história dos Estados Unidos. Seu realismo histórico tinha credibilidade, mas muitas vezes era dualista, contraditório, com uma moral subordinada a relações selvagens e ao poder e autoridade impostos.

Suas narrativas cinematográficas eram de lutas de vida, justiça duvidosa, injustiças terríveis, dominadores e dominados, heróis e malfeitores. John Ford é considerado o maior mestre do faroeste americano. Colonos batalhadores, índios corajosos, cavalaria romântica e violenta, guerras por terras e por ordem, pistoleiros, mulheres fortes, o conceito de heróis e bandidos, tudo isso foi abordado pelo seu cinema.

Abordaremos seu cinema em blocos temáticos.

O Monument Valley, Arizona, cenário natural de filmes de John Ford

A tipificação do faroeste

John Ford começou a tratar do faroeste em seus filmes mudos. Em vários de seus clássicos, ele desenvolveu os parâmetros desse gênero do cinema, criou uma tipologia para a essa narrativa.

No filme no “No Tempo das Diligências”, de 1939, Ford popularizou o gênero e apresentou um mosaico de tipos humanos, como se fora a própria representação da sociedade americana da época do faroeste, com seus dilemas, e com um pano de fundo de uma perseguição indígena nas terras do Arizona, especificamente no famoso cenário do Monument Valley. O filme foi tecnicamente impecável, dramático, imitado e lançou o ator John Wayne ao estrelato.

No filme “Paixão dos Fortes”, de 1946, John Ford aborda o famoso personagem do Oeste, Wyatt Earp, e conta a história do mítico tiroteio no O.K. Corral. Wyatt Earp (Henry Fonda) é um pacífico e respeitado criador de gado, negócio que comanda junto com os irmãos Morgan (Ward Bond), Virgil (Tim Holt) e James (Don Garner). Quando James é assassinado e sua criação roubada, Earp aceita tornar-se xerife de Tombstone para instaurar a paz na cidade, encontrar os criminosos e vingar a morte do irmão.

Em “O Homem Que Matou o Facínora”, de 1962, Ford trabalha com história e lendas para tratar da transição do velho oeste americano para a modernidade democrática com personagens bem estruturados e que representam os mitos da época: Um vaqueiro, um fora da lei, um advogado e um jornalista. Um filme fantástico, onde Ford faz um testamento de seu cinema e expõe toda a sua visão sobre o processo da colonização americana com suas dificuldades, dualidades e contradições. E Ford lança uma questão: A história americana foi forjada por mentiras?

No Tempo das Diligências, 1939

Cenas de “No Tempo das Diligências”, 1939

Paixão dos Fortes”, 1946

Cenas de “Paixão dos Fortes”, 1946

O Homem Que Matou o Facínora, 1962

Cenas de “O Homem Que Matou o Facínora”, 1962

Dramas no Velho Oeste

Um dos grandes filmes de John Ford no cinema mudo foi “Três Homens Maus”, de 1926, onde já ficava patente sua predileção pela temática do faroeste, seus pioneiros e seus dramas. No caso desse filme, Ford aborda a corrida do ouro no território de Dakota, EUA, em 1870. O filme junta personagens procurados pela Lei com uma mocinha desamparada em uma jornada para o oeste em busca de riqueza e redenção.

“Caravana de Bravos”, de 1950, é um ótimo drama de colonos, onde um grupo de mórmons pretende fundar uma nova colônia no Rio San Juan, Utah. Para tanto, contrata dois astutos aventureiros como guias. Mas, se deparam no percurso com uma gangue de bandidos em fuga que consideram a caravana mórmon como o disfarce ideal para escapar da Lei. Um filme é um grande representante do velho oeste, misturando assassinos, índios, geografia e desafios morais na jornada.

“Rastros de Ódio”, de 1956, é um clássico do faroeste. John Ford criou um épico sobre um veterano confederado da Guerra Civil Americana, Ethan (John Wayne), que rastreia de maneira imparável índios Comanches que massacraram seus familiares e sequestraram suas sobrinhas. O filme é uma jornada psicológica, dramática, com uma fotografia e cenários belíssimos. O personagem de Ethan é complexo, amargurado, racista, que odeia os índios. Uma curiosidade do filme é que os índios pouco aparecem, mas dão o tom de toda a narrativa.

Três Homens Maus, 1926

Cenas de “Três Homens Maus”, 1926

Caravana de Bravos, 1950

Cenas de “Caravana de Bravos”, 1950

Rastros de Ódio, 1956

Cenas de “Rastros de Ódio”, 1956

A trilogia da Cavalaria

A cavalaria americana foi muito bem tratada no cinema de John Ford, às vezes como heróis e às vezes como assassinos, mas sempre como senhores da ordem pela força. O filme “Forte Apache”, de 1948, faz referências a episódios sangrentos da guerra da cavalaria estadunidense contra os índios, em especial à derrota do General Custer na Batalha de Little Big Horn, em Montana. Após o fim da Guerra Civil Americana, onde combateu, o veterano e respeitado tenente-coronel Owen Thursday (Henry Fonda) é enviado para o Fort Apache, um posto avançado da cavalaria.

Em “Ela Usava Uma Fita Amarela”, de 1949, temos que, em 1876, logo após o massacre da batalha de Little Big Horn, existe a ameaça da reunião de grandes tribos de índios numa guerra contra o Exército americano. O filme tem excelente fotografia que valoriza a paisagem do Monument Valley, cenário natural localizado na Reserva Navajo ao nordeste do Arizona. O título original do filme é de uma canção popular no exército americano. A fita amarela é um sinal usado pelas moças quando estão a namorar com algum soldado.

“Rio Grande”, de 1950, acompanha o coronel Yorke (John Wayne) do segundo regimento da cavalaria, após a Guerra Civil americana, que foi designado para um posto da fronteira com o México, próximo ao Rio Grande (Rio Bravo para os mexicanos) no qual defende os colonos contra os Apaches renegados. Com batalhas sangrentas, o coronel tem de enfrentar ainda dilemas familiares com seu filho recrutado e a mãe que quer levá-lo de volta.

Forte Apache, 1948

Cenas de “Forte Apache”, 1948

Ela Usava Uma Fita Amarela, 1949

Cenas de “Ela Usava Uma Fita Amarela”, 1949

Rio Grande, 1950

Cenas de “Rio Grande”, 1950

Conflitos com os índios

O cinema de John Ford tratou dos índios em diversos filmes, às vezes como perseguidores, mas também como perseguidos. Essa foi uma dualidade da colonização americana que trocava os papeis de inocentes e culpados. Em “Ao Rufar dos Tambores”, de 1939, temos um casal (Henry Fonda e Claudette Colbert) que decide se fixar na zona rural no Mohawk Valley, Estado de Nova York, no século XVIII. Tentando a vida de colonos, eles têm que enfrentar índios violentos e também britânicos que os insuflam numa guerra por terras.

Em “Terra Bruta”, de 1961, dois homens, um ex-batedor e beberrão (James Stewart), o outro um oficial de cavalaria (Richard Widmark), negociam com os índios comanches o resgate de brancos que foram sequestrados anos antes. O filme trata da colisão de culturas numa nação cheia de conflitos sangrentos por terras e também conflitos étnicos. O que fazer quando você passa a conviver por longo tempo com a cultura indígena? E como fica a sua cultura original? São questões do filme.

“Crepúsculo de Uma Raça”, de 1964, é um épico onde o diretor John Ford se preocupou em fazer uma espécie de “leitura histórica correta” sobre a questão indígena nos Estados Unidos, se desviando de uma moral selvagem presente em seus filmes anteriores. A trama se passa na segunda metade do século XIX quando o governo não cumpriu um acordo com os índios Cheyenne. Ao decidirem partir para as terras do Wyoming, seu local de origem, o governo classificou essa movimentação como “rebelião” e o Capitão da Cavalaria, Thomas Archer (Richard Widmark), tem que impedir a marcha. 

Ao Rufar dos Tambores, 1939

Cenas de “Ao Rufar dos Tambores”, 1939

Terra Bruta, 1961

Cenas de “Terra Bruta”, 1961

Crepúsculo de Uma Raça, 1964

Cenas de “Crepúsculo de Uma Raça”, 1964

Temas sociais

O cinema de John Ford era povoado por faroestes e guerras, mas isso não o impediu de realizar alguns filmes onde a temática social e os dramas humanos fossem abordados com um realismo apurado.

Em 1940, John Ford rodou “As Vinhas Ira”, baseado no livro de John Steinbeck. O filme é de um realismo social cruel. É a história de uma família de pequenos agricultores que, expulsos de suas terras no Oklahoma durante a depressão econômica, atravessam o país em busca de melhor sorte na Califórnia. O filme é duro e triste. A família só se depara com injustiças de um capitalismo selvagem, exploração dos trabalhadores, milícias de fazendeiros e polícia corrompida. Num visual cinzento, só há desesperança.

“Como Era Verde Meu Vale”, de 1941, é um filme sobre uma família, mas também sobre uma comunidade numa pequena vila no interior do País de Gales, e onde o trabalho duro nas minas de carvão são o sustento e o pano de fundo da trama. O filme trata de questões sociais dos trabalhadores, como a possibilidade da criação de um sindicato, mas também de dramas humanos do cotidiano. O filme é rico nos contrastes, não só entre a celebração e a tristeza, mas também entre a comédia e a tragédia. 

Em “Depois do Vendaval”, de 1952, John Ford retorna às suas origens irlandesas e roda uma comédia romântica sobre a história de um boxeador que, após matar acidentalmente um oponente num ringue, sai da América e retorna à sua cidade natal na Irlanda para comprar uma propriedade de família e viver em paz. Mas, peripécias e conflitos se estabelecem. Num clima bucólico, naturalista, com uma fotografia deslumbrante, onde as pessoas são extremamente impulsivas, mas simplesmente humanas, o filme é muito divertido de se ver.

As Vinhas da Ira, 1940

Cenas de “As Vinhas da Ira”, 1940

Como Era Verde Meu Vale, 1941

Cenas de “Como Era Verde Meu Vale”, 1941

Depois do Vendaval, 1952

Cenas de “Depois do Vendaval”, 1952

O legado para o cinema

John Ford foi um cineasta grandioso. Se tornou um dos maiores da história. Se desenvolveu desde o cinema mudo nos anos 20 até o início da década de 70. Com uma vasta filmografia, maturidade técnica e produção impecável, Ford focou seu cinema na formatação da identidade dos Estados Unidos, seus pioneiros, benfeitores e suas lendas. Em suas lentes, a história da colonização americana e a transição para a modernidade de uma nação foram tratadas com base na realidade, mas com uma forte tonalidade mitológica.

John Ford se especializou no gênero do faroeste e nas guerras americanas. Seu realismo selvagem para tratar de eventos históricos e lendários dos Estados Unidos da América traduzia bem a movimentação dos agentes sociais e políticos da época, século XVIII e XIX, ou seja, uma visão histórica com muita dualidade entre heróis e bandidos, mitos nacionais expressos em um heroísmo intolerante e sanguinário, muito esforço para se vencer na vida e um tratamento contraditório sobre os povos indígenas, em geral denegridos e vistos como malfeitores, mas também unidos e destemidos.

John Ford tinha uma narrativa clássica, sem experimentações ou filosofias, rodava seus filmes de maneira direta e objetiva, como se assistisse os eventos acontecerem, parecia mais um observador do mundo. Seus personagens eram cheios de dilemas, impulsivos, mas, na maioria das vezes, eram fortes, complexos e determinados. Seus dramas humanos eram ditados pelo contexto histórico de um povo em desenvolvimento, com muitos percalços no caminho para a prosperidade. Perseguidos, perseguidores, culpados, inocentes, tolerância e intolerância. Para John Ford, o importante é a luta, é o esforço que a história exige.

O cineasta John Ford filmando

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