Grandes Diretores
O cinema de Akira Kurosawa: Coragem e sensibilidade num mundo sombrio e intolerante

O cinema de Akira Kurosawa: Coragem e sensibilidade num mundo sombrio e intolerante

Família e infância

Akira Kurosawa foi um cineasta e pintor japonês que dirigiu trinta filmes em uma carreira de mais de cinco décadas. Ele é amplamente considerado como um dos cineastas mais importantes e influentes da história do cinema.

Kurosawa nasceu em 23 de março de 1910, em Ōimachi no distrito de Ōmori de Tóquio e morreu em 1998. Seu pai Isamu era um membro de uma família samurai da província de Akita, trabalhou como diretor da escola secundária do Instituto de Educação Física do Exército, enquanto sua mãe Shima veio de uma família de comerciantes que vivia em Osaka.  Com descendência samurai, Kurosawa abordou em vários de seus filmes essa tradição milenar.

Sua grande influência da infância foi Heigo Kurosawa, seu irmão mais velho. Heigo encorajou Akira a enfrentar seus medos confrontando-os diretamente. Alguns comentaristas sugeriram que isso influenciaria a carreira artística posterior de Kurosawa, já que o diretor raramente hesitava em confrontar verdades desagradáveis e intolerâncias ​​em seu trabalho. Foi também com seu irmão que Akira se interessou pelo cinema, teatro e circo.

Chegada no cinema

Kurosawa entrou na indústria cinematográfica japonesa em 1936, após um breve período como pintor.  As responsabilidades de Kurosawa aumentaram e ele trabalhou em tarefas que vão desde a construção do palco e desenvolvimento do filme até a localização, polimento de roteiro, ensaios, iluminação, dublagem, edição e direção de segunda unidade.

Depois de anos trabalhando em vários filmes como assistente de direção e roteirista, ele estreou como diretor durante a Segunda Guerra Mundial com o popular filme de ação Sanshiro Sugata, de 1943. Após a guerra, o aclamado O Anjo Embriagado (1948), no qual Kurosawa escalou o então pouco conhecido ator Toshiro Mifune para o papel principal, consolidou a reputação do diretor como um dos mais importantes jovens cineastas do Japão. Esse filme é frequentemente considerado o primeiro grande trabalho do diretor.

No cinema, Kurosawa teve influência do ítalo-americano Frank Capra, do pioneiro e também americano, David W. Griffith, do americano John Ford e do alemão expressionista Friedrich W. Murnau. Seu cinema era caracterizado por um hiper-realismo, temáticas sujas e voltado para as preocupações com dilemas sociais e dramas de vida.

O Diretor Akira Kurosawa e seus filmes iniciais: “Sanshiro Sugata”, 1943, e “O Anjo Embriagado”, 1948

Cenas de “Sanshiro Sugata”, 1943

Cenas de “O Anjo Embriagado”, 1948

Kurosawa conquista o mundo

Não demorou muito para que Kurosawa, que já se tornara um exímio roteirista e Diretor, ganhasse fama internacional. Em 1950, rodou “Rashomon” e venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza no ano seguinte. Com um roteiro que narra o assassinato de um samurai e o estupro de sua esposa de vários pontos de vista diferentes e conflitantes, debatendo uma espécie de filosofia da verdade, o filme foi um marco do cinema asiático que passou a ser admirado em todo o mundo.

Com uma carreira impulsionada por sua repentina fama internacional, Kurosawa, agora reunido com seu estúdio de cinema original, a Toho Company, realizou em 1952 outro brilhante filme: “Viver” (no original “Ikiru”). O filme é estrelado por Takashi Shimura como um burocrata de Tóquio com câncer, Watanabe, em uma busca final pelo significado da vida antes de sua morte.

Num frenesi de criatividade e talento, Kurosawa rodou em 1953 aquele que é considerado sua maior obra prima: “Os Sete Samurais”, um gênero de filmes de ação pelo qual ele se tornaria mais famoso. A história é simples, sobre uma vila agrícola pobre no Japão medieval que contrata um grupo de samurais para defendê-la contra um ataque iminente de bandidos. O filme recebeu um tratamento épico completo, com um elenco enorme e ação meticulosamente detalhada. O filme somente foi lançado em 1954 e teve enorme aclamação de público e de crítica pelo mundo.

“Rashomon”, 1950, “Viver”, 1952, “Os Sete Samurais”, 1954

Cenas de “Rashomon”, 1950

Cenas de “Viver”, 1952

Cenas de “Os Sete Samurais”, 1954

Misérias, maldades, delírios

Akira Kurosawa, desde muito novo, se interessou pelas questões sociais e políticas do Japão e do mundo, numa clara linha de esquerda. Quando ele se sentiu confiante com seu sucesso e com financiamentos garantidos, Kurosawa rodou três filmes especialmente impactantes onde aborda questões de classes sociais desiguais, crueldades e vida proletária. São eles: “Ralé”, 1957, “Homem Mau Dorme Bem”, 1960, e “Dodeskaden, O Caminho da Vida”, 1970.

Em “Ralé”, 1957, Kurosawa adaptou uma história do escritor russo Maxim Gorky numa linguagem teatral. Filmado numa favela, retrata o lado sombrio da natureza humana. Festas, misérias, sofrimentos, opulências e suicídios se misturam passo a passo num profundo olhar frente à crueldade entre os seres humanos.  Um filme duro numa realidade dura.

Em 1960, foi lançado “Homem Mau Dorme Bem”. No Japão pós-guerra, em uma história de escândalos corporativos, um jovem tenta usar sua posição no topo de uma empresa corrupta para expor os homens que foram responsáveis pela morte do seu pai. Kurosawa faz uma crítica ao capitalismo e sua selvageria, mas, principalmente, sobre as maldades de homens de negócios num clima sufocante de cinema noir.

Em 1970, Kurosawa rodou “Dodeskaden, O Caminho da Vida”. Filmado em favelas de Tóquio, o filme acompanha vários personagens: o pai e o filho sem-teto imaginando a casa dos sonhos, uma criança que se imagina um condutor de bonde em um ferro-velho, e uma jovem maltratada pelo tio. Um filme visceral sobre delírios, dramas sociais e pessoas miseráveis que sonham com uma vida melhor.  

“Ralé”, 1957, “Homem Mau Dorme Bem”, 1960, e “Dodeskaden, O Caminho da Vida”, 1970

Cenas de “Dodeskaden, O Caminho da Vida”, 1970

Tradições, guerras, a loucura pelo poder

Em 1957, Kurosawa lançou “Trono Manchado de Sangue”, uma adaptação para o Japão medieval da obra “Macbeth” de William Skakespeare. Abordando tradições e lendas, o filme conta a história de um guerreiro samurai que, ao ouvir de um ser misterioso uma profecia de que se tornaria um grande Senhor feudal, se vê imerso numa trágica e sangrenta luta pelo poder.

No seu filme “Kagemusha, A Sombra do Samurai”, de 1980, Kurosawa volta aos tempos medievais, especialmente ambientado no período Sengoku da história japonesa, e conta a trama de um criminoso de classe baixa que é ensinado a se passar pelo chefe guerreiro moribundo para dissuadir os senhores oponentes de atacar o clã recém-vulnerável. Kagemusha é o termo japonês para um chamariz político, que significa literalmente “guerreiro das sombras”. 

Em “Ran”, de 1985, Kurosawa dirige um drama de guerra medieval se voltando novamente para uma peça de William Skakespeare, dessa vez “Rei Lear”. Como em outros filmes seus sobre a luta pelo poder, temos na história a loucura de uma família que, após um senhor feudal, patriarca de um clã, decidir dividir o reino entre os três filhos, uma sangrenta guerra se estabelece.

“Trono Manchado de Sangue”, 1957, “Kagemusha, A Sombra do Samurai”, 1980, “Ran”, 1985

Cenas de “Trono Manchado de Sangue”, 1957

Cenas de “Kagemusha, A Sombra de Um Samurai”, 1980

Cenas de “Ran”, 1985

Humanismo, plasticidade, lirismo, amizade

Após um período depressivo e sem apoio de produtoras, Kurosawa retornou ao cinema de maneira brilhante ao lançar em 1975 o belo “Dersu Uzala”. Adaptando um livro de memórias do explorador russo Vladimir Arsenyev, Kurosawa fez um épico em forma, mas íntimo em sentimentos. Situado nas florestas do leste da Sibéria na virada do século XX, é um retrato da amizade que cresce entre um caçador idoso e um agrimensor russo. Um hino romântico à natureza e ao espírito humano com realismo e pureza.

Produzido por George Lucas e Steven Spielberg, Kurosawa rodou em 1990 um filme especialmente pessoal: “Sonhos”. São oito sonhos do cineasta que vão do lírico ao apocalíptico. Contemplativo, belo e extravagante, Kurosawa está de coração livre para abordar temas reais do mundo contemporâneo numa linguagem onírica. É uma linda viagem de imagens com plasticidade e eloquência.

Em “Madadayo”, de 1993, Kurosawa conta a história de um querido professor que passa a receber visitas de seus ex-alunos ao abandonar a sala de aula por uma vida de escritor. Ainda que temos aqui o pano de fundo dos ataques americanos na segunda guerra mundial, o filme é uma ode à amizade numa atmosfera de alegria, anedotas e confraternização. Temos humor e até mesmo excentricidades.

“Dersu Uzala”, 1975, “Sonhos”, 1990, e “Madadayo”, 1993

Cenas de “Dersu Uzala”, 1975

Cenas de “Sonhos”, 1990

Cenas de “Madadayo”, 1993

Conflitos de classes, investigação policial, impactos de guerra

Como já vimos ao longo deste artigo, Kurosawa se enveredou por temáticas diferenciadas, apesar de ser lembrado mais por seus brilhantes filmes de samurais. A seguir, temos três filmes com temáticas variadas envolvendo conflitos de classes, investigação policial e lembranças de guerra.

Em “A Fortaleza Escondida”, de 1958, Kurosawa aborda a luta de classes numa saga de dois camponeses que fogem de uma destruição causada por uma batalha e se envolvem casualmente com um General e uma Princesa. Enquanto o General deseja reconstruir um exército, os camponeses almejam roubar o ouro da Princesa.

Em 1963, Kurosawa filmou “Céu e Inferno” abordando sequestro e investigação policial. O curioso é que o título em português conseguiu resumir o filme que trata de conflitos de classes sociais. O céu é a mansão de um rico empresário e o inferno é o submundo de Yokohama, um lugar inóspito repleto de pobreza, dependentes químicos que se arrastam como zumbis em um clima pesado de desesperança. E o oprimido se cansa e vai em busca de algum tipo de vingança.

As consequências da segunda guerra na sociedade japonesa não ficaram em branco no cinema de Kurosawa. Em 1991 ele realizou “Rapsódia em Agosto”, onde trata do tema. No filme, a matriarca de uma família japonesa atravessa o tempo de dor pela perda do marido na explosão da bomba atômica de Nagasaki em 1945, da destruição da cidade, da necessidade de seguir viva, cuidando, educando e transmitindo sabedoria e paciência às novas gerações.

“A Fortaleza Escondida”, 1958, “Céu e Inferno”, 1963, “Rapsódia em Agosto”, 1991

Cenas de “A Fortaleza Escondida”, 1958

Cenas de “Rapsódia em Agosto”, 1991

O legado para o cinema

Akira Kurosawa foi um dos gigantes do cinema mundial. Seus filmes, além de possuírem uma complexa composição cênica, tinham muita dramaticidade. Em muitos deles, Kurosawa ficou conhecido como um pintor de imagens. Sua plasticidade era inigualável, tanto em seus filmes preto em branco, mas principalmente em seus filmes coloridos. Foi um mestre na condução de atores e em cenas que exigiam uma grande quantidade de coadjuvantes.

Seu cinema não tinha rótulos, trabalhou com diversas narrativas. É claro que seus épicos samurais são muito exaltados, mas também navegou com precisão por tramas existencialistas, dramas policiais, abordou a luta de classes, guerras medievais, a pobreza, a intolerância, a loucura pelo poder, as crueldades humanas e o sentido e a finitude da vida. Nunca deixou de dar voz aos oprimidos e de dialogar com os sonhos e esperanças que cultivou dentro de si.

Kurosawa sempre teve a coragem de lidar com as desgraças do mundo e com seus próprios medos de maneira absolutamente profissional, travando com seus sentimentos e emoções uma batalha artística. Deu fama ao cinema japonês e, nesse ponto, abriu as portas para o cinema fora dos padrões e da hegemonia de Hollywood.

Seu legado é enorme. Foi um artista que enobreceu o cinema, cultuado por estudiosos e cinéfilos, no topo do cinema de arte e também com bom público. Influenciou muitos cineastas pelo mundo e foi fartamente imitado no ocidente. Sofreu com um mundo sombrio, mas venceu.

O cineasta Akira Kurosawa filmando em épocas distintas

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